DO CLAUSTRO (2007) - estreou em 17/01/2008, em São Paulo


 Carolina Mesquita (esq.) e Débora Aoni (dir.) em "Do Claustro" (direção: Eduardo Sofiati

DO CLAUSTRO
de Ruy Jobim Neto

(Registrada na Biblioteca Nacional sob No. 440010, em 08/09/2008) 
solicitações pelo e-mail jobimneto.ruy@gmail.com 
Salvador, Bahia
Final do Século XVII
Uma cela individual no Convento de Santa Clara do Desterro

Personagens:
Irmã Mariana
Irmã Cecília
CENA 1

(Um último toco de vela num candeeiro ilumina parcamente a cela de IRMÃ MARIANA. As luzes da manhã começam lentamente, em resistência, ao longo da cena. Sinos repicam na torre do Desterro, anunciando os ofícios. IRMÃ MARIANA está deitada em seu catre de madeira, os lençóis por baixo dela. Está ofegante, visivelmente não dormiu à noite. Balbucia uma série de coisas desconexas, enquanto se masturba, nua sobre a cama. Este texto pode ser lido de forma livre).

MARIANA

Jaz em oblíqua forma, e prolongada,
A terra de Mariana toda cercada
De Netuno, que tendo o amor constante,
Dá-lhe muitos abraços por amante.
                                          
E botando-lhe os braços dela
A pretende gozar, por ser mui bela.
Nesta assistência tanto a senhoria
E tanto a galanteia
Que, do mar, de Mariana tem o apelido,
Como quem preza o amor de seu querido.

E por gosto das prendas amorosas,
Fica embevecida maré de rosas,
E vivendo nas ânsias sucessivas,
São do amor marés vivas
E se nas mortas menos a conhece
Mariana de saudades lhe parece.

(sinos repicam na torre)

CECÍLIA

(entra com um candeeiro, vê IRMÃ MARIANA nua e corre para ela) Irmã Mariana, cubra-te! Cubra-te, pelo amor do Espírito Santo! (ajuda-a) Vosmecê não dormiu novamente? Sinto que a cada dia perco a capacidade de te ajudar.

MARIANA

Alegremente vou me entregar a Deus, eu sei que Ele me espera. Muito brevemente, quiçá neste instante.

CECÍLIA

(ajuda-a a vestir a manta) Vosmecê tem muito caminho a percorrer até pisar o mar da Eternidade. Não acordei a essas horas para ter de ouvir blasfêmias! Vosmecê pode se vestir sozinha, a partir daqui.
MARIANA

Eu vou aos ofícios com vosmecê!

CECÍLIA

Não. Vosmecê tem ordens expressas da reverenda Madre para ficar aqui dentro de tua cela!

MARIANA

O meu estado e a minha aparência são tão lastimáveis assim, a pontos de eu não poder caminhar entre as irmãs e as noviças? Eu não posso ser vista por elas? Sou um mau exemplo?

CECÍLIA

Já temos problemas demais aqui, no Desterro. Eu não sei o que vosmecê pensa. Irmã Mariana, vosmecê bem sabe que não irei te abandonar, que estarei sempre contigo quando houver necessidade.

MARIANA

Então me diga, por clemência, onde estão as outras cartas?

CECÍLIA

Cartas?

MARIANA

Sim, as cartas do Dr. Gonçalo de Melo!

CECÍLIA

Elas não têm chegado mais ao Desterro. Mesmo para um mensageiro, o caminho a cavalo é perigoso, há muitos assaltantes. E me tem sido particularmente difícil conseguir alguma nova informação, ainda mais com a irmã que está atualmente como porteira.

MARIANA

Mas de quando foi a última carta que recebi dele? De agosto, setembro, outubro, talvez? E se ele estiver enfermo? E se já tiver morrido?

CECÍLIA

Já basta vosmecê estar enferma! Não tenho tido oportunidade nem tempo para ir à Cidade, nem para me preocupar com o que acontece fora dos muros do Desterro. Já tivemos problemas suficientes aqui, como eu disse. Houve falta de suprimentos e tivemos até de mandar derreter uma quantidade imensa de alfaias.

MARIANA

Foi por causa das alfaias, foi por causa do meu dote que Dr. Gonçalo está preso.

CECÍLIA

Vosmecê bem sabe que não! Pare com isso! Não se sinta culpada por algo que simplesmente não condiz com a realidade! E esse não é o modo de pensar nem de proceder de uma clarissa!

MARIANA

Não diga isso de mim, por amor do Santo Cristo! Eu sou clarissa, estou aqui enclausurada procurando seguir estritamente a via da pobreza. A mim não me importam alfaias de ouro e prata. Mas há uma vida lá fora, e que está encarcerada, e vosmecê muito bem sabe que eu farei de tudo para salvá-la.

CECÍLIA

Muito bem. Eu vou te trazer pão e água. E que vosmecê coma deste pão e beba desta água. Não vai ser passando as tuas noites em claro, desta forma como te encontrei, que vosmecê vai salvar alguma vida. Pois mesmo para a plenitude e o silêncio de uma oração, para que o espírito seja bem aventurado, é necessário, antes de tudo, que o corpo esteja fortalecido. E eu quero ver vosmecê forte, da mesma forma como da vez em que te conheci.

MARIANA

(sorri) No claustro!

CECÍLIA

Sim, fomos apresentadas no claustro.

MARIANA

Para as tuas aulas de canto.

CECÍLIA

(sinos repicam) Agora eu preciso ir para os ofícios. E logo em seguida, quando retornar, eu trarei pão e água para vosmecê.
MARIANA

Cecília... (corrige) Irmã Cecília. Sou-lhe muito grata. E eu gostaria muito de poder voltar em breve para o convívio das minhas adoradas irmãs... e das crianças...e da reverenda Madre. Mas nesse meio tempo, não me deixe desguarnecida de notícias do Dr. Gonçalo. Só Deus sabe o quanto é importante para mim. E vosmecê também sabe, pois foi exatamente vosmecê quem o trouxe até o Desterro, até esta cela, até a mim. E chega a ser estranho, sabia?

CECÍLIA

O quê?

MARIANA

É que eu, nas minhas madrugadas em claro, à luz de velas, enquanto leio e releio as Sagradas Escrituras, ou até mesmo entoando algum cântico, bem baixinho, eu consigo ouvir, bem de longe e com muita clareza, os atabaques da Bahia. E todos aqueles que se encontram trancados entre quatro paredes com um grito parado na garganta.

CECÍLIA

Só podemos rezar por essas almas, para que o Senhor as proteja sempre.

MARIANA

Por certo... (sinos) Mas vá! Vá para os ofícios, adorada Irmã Cecília!

CECÍLIA

Eu volto.

 (IRMÃ CECÍLIA sai, IRMÃ MARIANA desaba).

(luz cai em resistência)

CENA 2

(as duas clarissas já se encontram em cena, enquanto a luz abre em resistência)

CECÍLIA

Vosmecê sequer tocou no pão e na água.

MARIANA

Não é possível que não haja correspondência alguma do Dr. Gonçalo. Não é possível.

CECÍLIA

Mas isso não é motivo.

MARIANA

É motivo suficiente! (tempo) Perdão. Peço que me perdoe, Irmã Cecília. Eu tenho estado um tanto quanto fora de mim. Mas eu prometo que com muita oração e com muita alegria na alma, tudo vai se encaminhar da melhor forma possível.

CECÍLIA

Por certo que vai. E agora eu peço, por amor do Cristo, que vosmecê se alimente um pouco, ao menos um pouco.
MARIANA

Irmã Cecília! Houve alguma vez em tua vida em que vosmecê precisou fazer alguma coisa, em virtude de como se encontrava em determinado momento?

CECÍLIA

Como assim?

MARIANA

Vosmecê sabe que eu estou morrendo.

CECÍLIA

Eu não sei de nada. E vosmecê, por favor, não me repita mais uma sandice dessas! Saiba que tudo o que eu fizer será para que vosmecê não se enfraqueça. Afinal de contas, pelo que eu saiba, nenhuma de nós aqui tem qualidades suficientes para atingir a santidade através de martírio.

MARIANA

Não a santidade, mas a realidade. Se eu te disser que é apenas em vosmecê que eu deposito toda a minha confiança, e que diante de tudo o que tem acontecido, eu pedir a vosmecê dois favores imensos, eu agradeceria eternamente se puder ser atendida. É algo sério. Não tenciono brincar com isso.

CECÍLIA

Não foi justamente nossa Santa Mãe Clara quem nos ensinou a ajudar as irmãs que estivessem descobertas e necessitadas?

MARIANA

Sim.

CECÍLIA

Façamos uma troca. Vosmecê come do pão e bebe da água que eu lhe trouxe e eu te serei toda ouvidos para esses teus dois pedidos. (IRMÃ MARIANA se serve e bebe um gole) Pois bem... Quais são eles?

MARIANA

Eu quero me confessar contigo. E depois vosmecê me conceda a extrema unção.

CECÍLIA

Vosmecê disse que não ia brincar com esse tipo de coisa.

MARIANA

Eu não estou brincando.

CECÍLIA

Eu não vou fazer isso! Eu não posso e nem devo te ajudar nesses teus dois pedidos! E por três motivos muito distintos: primeiro – esse não é o tipo de favor que se peça a alguém, assim, aleatoriamente.

MARIANA

Não é aleatoriamente.

CECÍLIA

Segundo – apenas um vigário é que pode conceder o sacramento da extrema unção, que não é o teu caso. E apenas um vigário é que pode ouvir uma confissão.

MARIANA

Eu não confio nos vigários.

CECÍLIA

E terceiro – é uma verdadeira insânia, uma verdadeira blasfêmia contra tudo o que é mais divino. Imagine, vosmecê, na flor de tua juventude, vir até alguém, no caso à minha pessoa, e fazer tal solicitação. Eu não entendo nada disso.

MARIANA

Mas vosmecê já viu uma extrema unção na tua frente...

CECÍLIA

Não.

MARIANA

... E que aconteceu nos teus próprios braços, pelo que eu saiba.

CECÍLIA

De onde vosmecê tirou isso?

MARIANA

Todo o Desterro sabe dessa história.

CECÍLIA

(tempo) Não. Sabe apenas parte dela. Mas isso não te dá o direito de abrir este meu passado única e exclusivamente para tirar proveito e me fazer esse tipo de solicitação, Irmã Mariana!

MARIANA

Mas eu estou morrendo e vosmecê muito bem sabe disso.

CECÍLIA

(tempo) O que vosmecê tem de tão pecaminoso assim, para confessar?

MARIANA

Meu coração navega em culpa. As águas turbulentas dos meus pensamentos fazem com que eu não durma! Eu me debato, eu me reviro, eu me destroço em mil pedaços, e isso tudo para quê, meu Deus? Para que eu perceba que dentro de toda a imensidão dessas nossas paredes aqui, do Convento de Santa Clara do Desterro, e lá fora, em toda a Cidade da Bahia, eu sei, que do fundo do meu coração, eu posso fazer alguma coisa. E vosmecê também sabe disso. Por favor, por clemência, por tudo quanto é mais sagrado, por Deus, me ouça!

CECÍLIA

(tempo) Quando Manuel Dias morreu nos meus braços... Manuel Dias era um desses mascates, e sempre caminhava pelos engenhos, a cavalo, trazendo nas mulas de carga toda sorte de mercadorias vindas de Portugal. Manuel Dias era o homem que eu amei. E morreu de um veneno colocado num copo de vinho que não era para ele. Era para minha irmã. E isso já faz alguns anos, mas é uma imagem deslocada no limbo do tempo que me salta aos olhos, como se eu pudesse beijá-lo aqui, agora, à altura dos meus lábios.

MARIANA

E depois disso vosmecê tomou o hábito?

CECÍLIA

Eu já era noviça.

MARIANA

E tua irmã?

CECÍLIA

Luisa se matou logo em seguida, utilizando um facão de mesa, quando soube do que aconteceu a Manuel Dias e de quem tinha preparado o veneno para ela. Eu fui punida duplamente. E então Manuel morreu nos meus braços, e foi quando um jesuíta que passava pelo lugarejo concedeu a ele o último sacramento. Sim, eu assisti a uma extrema unção. E Manuel fechou os olhos e eu não pude beijá-lo. Do contrário, eu seria denunciada à Inquisição. (tempo) Vosmecê pode contar o que quiser para mim. Que eu guardarei em segredo de confissão.

(luz em resistência).
CENA 3

(Os atabaques soam ao longe. Mariana, de pé, sente o batuque e sorri. Seu corpo, lânguido, pulsa lentamente, numa sensualidade solene).

CECÍLIA

O que está fazendo?

MARIANA

Há um forte sussurro no ar, muito quente... Os atabaques mais distantes, em todo o resplendor da pele, quando tamborilam os seus lundus, eles anunciam que é chegada a grande noite.

CECÍLIA

Eu não compreendo a relação que isso guarda com o que vosmecê pretende me contar.

MARIANA

A Bahia, ela tem dois significados. É o Sol, é a pele. O Sol ilumina e gera a riqueza da cana de açúcar. E a pele, em carne viva, revela o rastro dolorido e vermelho da chibata. Quando me dei por jovem, naquilo que podemos chamar de “rito de passagem”, permaneceu guardado em minha lembrança mais recôndita o som da grande moenda.

CECÍLIA

O teu pai é um dos mais poderosos senhores de engenho da Bahia.

MARIANA

Sim. D. Francisco vivenciou duas brutais amarguras em sua vida. E nem mesmo todo o seu poder e toda a sua riqueza conseguiram até hoje reverter tamanha dor. Primeiro, minha mãe não lhe deu filho varão. Segundo, minha mãe lhe deu apenas uma primogênita. E assim, nessa ironia, nem mesmo todas as boticas puderam salvá-la de um último parto desastroso. Tão lancinantes eram os gritos dela, que até os cantos de banzo vindos da senzala foram silenciados. Não foi possível salvar a criança.

CECÍLIA

Vosmecê jamais tinha me contado isso.

MARIANA

Quando minha mãe foi enterrada sob uma lápide da capela do engenho de Sant’Anna, eu posso jurar que ninguém jamais viu meu pai levar ramos de flores para ela. Todos os que depositavam lembranças em homenagem à minha mãe tinham nela um grande amor que meu pai nunca se permitiu exprimir. Ele era a própria imagem da derrota, tendo em mim, segundo a visão dele, a figura daquela que não pode ser sua herdeira, daquela que não é um filho varão.

CECÍLIA

Mas o Dr. Gonçalo fez com que o teu pai pagasse o teu dote ao Convento.

MARIANA

Isso é até onde vosmecê conhece da história.

CECÍLIA

Mas afinal de contas, por que o Dr. Gonçalo foi preso?

MARIANA

Por minha causa.

CECÍLIA

Irmã Mariana...

MARIANA

Eu fui criada no meio das mucamas e brinquei boa parte da infância com as negrinhas da casa, até mesmo aprendi seus passos de dança. Para mim, a presença de meu pai na minha vida era um tanto quanto arredia. Ele mergulhava num silêncio tão avassalador, que só era cortado por alguma festividade religiosa, ou quando os mascates traziam peças novas para o engenho. Meu pai era uma mortificação viva. E eu, que de menina a sinhá, ganhei corpo, dançava os lundus escondida, descia pelos barrancos à noitinha e me permitia ver coisas de que até Deus duvida. Eu pulava a varanda do sobrado e despistava os feitores do engenho. E no meio da mata grossa, era lá que a coisa toda acontecia.

CECÍLIA

Do que vosmecê está falando?

MARIANA

Estou falando de quando a respiração se altera, quando o suor se evapora e se mescla com o sabor nos lábios, na junção dos corpos, homem e mulher, o sabá maravilhoso no grito profundo dos atabaques, no gemido mais clandestino da África.  (tempo) Vosmecê alguma vez já viu um homem negro e uma mulher negra juntos, no meio da noite?

CECÍLIA

Não.


MARIANA

Eu já. (pausa) Quer que eu descreva?

CECÍLIA

Não.

MARIANA

(ri) A Bahia de Todos os Santos surpreende, vosmecê muito bem sabe disso.

CECÍLIA

Vosmecê está muito fraca, Irmã Mariana. Tem de descansar agora.

MARIANA

(sorri) E eu nem comecei meu relato, ainda. (tom) A minha pele, como a tua pele, ambas tão alvas e reluzentes, são mercadorias a peso de ouro, não importa quem compre, não importa quem venda. Somos espécimes raros e disputados, por aqui,  Cecília. Somos parte de um caldo. (tempo) Pense num viajante que alguma vez tivesse sido testemunha de como os negros na senzala misturam pedaços órfãos de um porco ao feijão e aos condimentos... E neste caldo misterioso, no calor dos lundus, no suor das fornalhas doces de cana, na aguardente proibida, qualquer centelha pode devorar mil destinos. (tempo) Como eu cheguei até aqui? Como eu cheguei nestas paredes santas do Desterro? Pergunte ao meu pai. Ele mesmo, com a boca fedendo em ódio, nadando no mais profundo desatino, fez penetrar seus dedos embebidos de podridão por debaixo de minhas próprias cobertas.

CECÍLIA

Deus meu!

MARIANA

E tentando me fazer passar por uma de suas negrinhas, com a outra mão ele procurou firmemente me destroçar o que de mais sagrado temos, despindo parte de suas roupas, o membro em riste, a força que impedia meus movimentos, era como se um exército inteiro de apenas um único soldado estivesse me dominando e aquela boca (arrepia) que cuspia uma língua a percorrer minha pele alva.

CECÍLIA

Insânia!




MARIANA

Só então é que eu pude perceber que não eram as vezes de uma negrinha que eu estava fazendo. O que a demência daquele ser fazia era realmente subjugar a minha pele alva, a minha carne branca, para que eu pudesse dar a ele o filho varão que eu não pude ser.

CECÍLIA

Por Deus, ele atacou vosmecê!

MARIANA

Estou muito cansada, agora.

CECÍLIA

O teu próprio pai te possuiu.

MARIANA

Não. As mucamas avisaram Antonio, um estimado amigo que dominava como ninguém as lutas tribais de Angola. Negro forte. Ele avançou sobre meu pai, e eu pude me soltar das minhas cobertas, eu, quase nua, corri do meu quarto e me abracei às mucamas, que dali me levaram. Meu pai berrava contra mim: “Dissoluta! Dissoluta! Ingrata!”.

CECÍLIA

E o negro?

MARIANA

Antonio foi cercado pelos homens a serviço do feitor. Foi amarrado e levado ao tronco imediatamente. Meu pai berrava da varanda para todo o engenho ouvir: “duzentas chibatadas nesse preto! Eu quero que ele morra!”. O feitor-mor me tirou à força do meio das mucamas, e me levou até à cena para eu assistir ao suplício de Antonio. Meu pai me viu, do alto da varanda, e de lá continuou berrando: “Agora vê, sua maldita, o resultado de tua teimosia! Agora vê e aprende o valor de um pai!” Os berros de dor de Antonio se fizeram ouvir por todo o Recôncavo. A negraria da Bahia toda espalhou o meu infortúnio. E o de Antonio.

CECÍLIA

Então era vosmecê.

MARIANA

Eu não sei que versão desta história vosmecê ouviu nas ruas. Talvez tivessem encoberto o meu nome, ou o do meu pai, por medo. Mas o fato é que eu fui testemunha da morte do amigo tão querido e tão fiel. O corpo dele foi simplesmente jogado no rio. Eu mesma fui jogada em meu próprio quarto, sem direito a sair, somente a pão e água. A única coisa que me esperava era a ira de meu pai, revestida de muito maior vigor. E eu seria então mais uma peça em seu engenho, esperando a sua fornalha me transformar em melaço, fazendo do meu corpo um pão de açúcar, mascavo na cabeça e impuro na alma.

CECÍLIA

Mas isso ainda não explica como vosmecê veio parar aqui.


MARIANA

Na mesma noite, sem perder mais tempo, as mucamas conseguiram dois ou três escravos muito fortes. Eu fui retirada de meu quarto e levada dali em absoluto silêncio. Eu não sei até hoje como eles conseguiram despistar a atenção cerrada dos feitores. O fato é que eu não estava mais lá, em meu quarto, e foi praticamente a última vez na vida em que eu veria a casa onde nasci, que eu veria Sant’Anna. Mas eu não podia mais olhar para trás, tudo era muito arriscado. No entanto, ainda não seria a última vez que eu veria o meu pai.

CECÍLIA

Onde vosmecê foi parar?

MARIANA

Fui levada para um quilombo, não sei precisar a que distância de Sant’Anna. Mas o certo é que neste quilombo eu pude conhecer a liberdade de que uma vez na vida tinha ouvido falar.

CECÍLIA

Um quilombo. Eu já ouvi relatos sobre eles.

MARIANA

Esse não era muito grande, e nem sei ao certo se há outros maiores. E entre dançar e cantar, e tomar banho no rio, completamente nua entre as crianças e as jovens negras, pegar uma mangaba ali, uma graviola aqui, entre se cobrir com vestidos de diversas cores e ter o corpo todo ornado de colares, pulseiras e argolas, e ainda, ah, caminhar pelo quilombo, no meio de todos, com os seios à mostra, é que eu pude aprender o belo significado do que é ser um sabiá, um tucano, um papagaio... Livres... Como merecem ser todas as criaturas de Deus... (mira IRMÃ CECÍLIA) Por que me tomas?

CECÍLIA

Eu não vou dizer que invejo vosmecê, pois não compete a uma clarissa invejar outra.




MARIANA

Faltava-me ainda uma última sensação, aliás, a primeira de todas. Vosmecê já foi tocada por um homem sem a interferência do sentimento?

CECÍLIA

Vosmecê está falando...

MARIANA

 Eu estou falando do encontro das cores, a pele branca e a pele negra, ao se transformarem numa só forma, gritam, elas gritam! E transbordam. Tudo de que me lembro é que eu me encontrava à parte, dançando. Não via simplesmente ninguém. A música e a batida forte dos atabaques me tomavam por completo. Ele não dizia nada, nem precisava. Nosso diálogo não carecia de sílabas. Não fui beijada, não tive carícias ou palavras bonitas, e ele então simplesmente rasga a minha roupa com toda a violência, uma violência que não agride, mas atrai, daqueles gestos que te deixam nua e entregue. O negro abriu as minhas pernas, passou as mãos pelo meu ventre, beijou os meus mamilos como se deleitasse de néctar, eu arrepiava. Em seguida, aquele homem me acomete de seu membro, viril, impecável, quente e atordoante! Ele me fez sentir completa, dócil, virada do avesso! Eu gritei, mas ele sabia fazer as coisas. A primeira dor daquele homem dentro de mim ria de minha meninice. Era visceral, era descabido, era incessante. Eu gritando, ele rindo com aqueles dentes másculos, aquela pele marcada pela chibata, e a sensação de receber, de engolir, que te deixa impune, celestial, messalina, devassa, santa, incandescente! (tom) Vosmecê não guarde inveja de mim, não. Eu sou apenas um ser humano de carne e osso.

(Neste instante, IRMÃ CECÍLIA agarra IRMÃ MARIANA e a beija com toda a vontade. Pára, afasta-se um pouco, estranhando, e sai. IRMÃ MARIANA desaba, atônita, perplexa, cansada)

(luz em resistência)

CENA 4

(Sinos e solidão. IRMÃ CECÍLIA está ausente por dias. IRMÃ MARIANA, em cena, está mergulhada em fraqueza e murmúrios desconexos. Balbucia coisas. Ela reza, veste o véu, retira-o, retorna à escrita de cartas, dorme muito, remói-se desesperada por uma culpa que imagina ou sabe ter. Está sem notícias, o que a mortifica. Luz em resistência).

CENA 5

(Quando a luz abre, em resistência, IRMÃ MARIANA está curvada sobre a pequena arca onde, instantes antes havia começado uma carta. Dorme sobre ela. Entra IRMÃ CECÍLIA, que vê a carta, pega-a e a lê. IRMÃ MARIANA acorda, vê IRMÃ CECÍLIA e a abraça com força)

MARIANA

Por que vosmecê me deixou? O que eu te fiz?

CECÍLIA

Irmã Mariana, eu aconselho que vosmecê se guarde à mais rigorosa penitência.

MARIANA

Penitência? (pega a carta de volta) Mas não é exatamente vosmecê que tem criticado esse meu martírio?

CECÍLIA

Um bom instante reservado à oração e ao retorno das boas virtudes irá te ser benéfico.

MARIANA

Eu só tenho feito rezar nesses últimos dias em que vosmecê sequer apareceu! Por que esta distância? O que eu fiz? Eu estou sob segredo de confissão com vosmecê, e sou abandonada assim, enquanto tento purgar os meus pecados?

CECÍLIA

Purgar pecados? Tudo o que vosmecê me contou não passa de sandices graças ao teu estado débil.

MARIANA

Mas eu estou morrendo.

CECÍLIA

Vosmecê se deixa entregar por uma culpa virulenta que te derramou nessa tua depressão imaginária, nesse teu sacrifício disforme, uma insânia a perder de vista!

MARIANA

Eu já te disse que estou morrendo, Irmã Cecília!

CECÍLIA

É completamente contra todas as leis do Senhor, contra toda a Regra de que somos guardiãs! E vosmecê está se deixando levar por um sentimento de culpa que não guarda lógica alguma.

MARIANA

Guarda, sim!

CECÍLIA

Vosmecê não é culpada pelos acontecimentos do mundo, consegue perceber? Vosmecê não tem em tuas mãos a remissão dos pecados do mundo, não é o teu sacrifício que vai mudar o curso da História, não é a tua debilidade que vai tirar o Dr. Gonçalo da Cadeia!

MARIANA

Mas eu posso fazer!

CECÍLIA

Nos descaminhos dos teus pensamentos, vosmecê acredita piamente que uma religiosa, que uma mulher neste mundo pode ou vai conseguir mudar o rumo das coisas? Vosmecê por acaso não conhece o mundo em que vive? Não é vosmecê quem fala tanto em liberdade, de pássaros, de tomar banho nua com as negras? Acredita mesmo que essa tal liberdade possa existir?

MARIANA

Eu não entendo o que vosmecê diz! Eu estou morrendo, é tudo o que sei!

CECÍLIA

Vosmecê não carrega os pecados desta vida! E vosmecê não está morrendo!

MARIANA

Eu já pedi a vosmecê que me conceda a extrema unção!

(tapa de IRMÃ CECÍLIA em IRMÃ MARIANA, que cai ao chão)

MARIANA

(tempo) Eu te perdôo.

(IRMÃ CECÍLIA, percebendo a extensão do que acabara de fazer, procura levantar IRMÃ MARIANA e a toca sensualmente, procurando em seguida se desfazer do acontecido)

CECÍLIA

Vosmecê pode retornar à tua confissão. A partir de onde parou.

MARIANA

A única coisa que eu não posso fazer é apagar da memória todo o meu passado. (pausa) Nós conhecemos como é que é o mundo lá fora, Irmã Cecília. A Bahia de Todos os Santos surpreende, vosmecê sabe muito bem. (pausa) E nós não somos o que parecemos ser.

CECÍLIA

Talvez não seja esta nem a hora nem o momento de vosmecê falar de contradições.

MARIANA

Contradições? Sim! Vamos falar de contradições.

CECÍLIA

Não me parece salutar tocar nesse tipo de assunto.

MARIANA

Salutar é não fechar os olhos. Por isso tenho perguntado a vosmecê sobre as cartas de Dr. Gonçalo.

CECÍLIA

Lá vem vosmecê novamente com essa história de cartas, cartas e mais cartas de um Dr. Gonçalo que vosmecê sequer sabe se ainda continua vivo! Isso é uma contradição!

MARIANA

Por quê? Vosmecê tem alguma informação? Algo que esqueceu de me dizer? Alguma informação dele?

CECÍLIA

Não!

MARIANA

Mas vosmecê não tem ido à cidade? Não tem saído do Convento? O que tem feito todos esses dias longe de mim? Isso é uma contradição!

CECÍLIA

Vosmecê retome a tua confissão de onde parou, por favor! Onde foi mesmo? O negro. Vosmecê parou aí.

MARIANA

Está bem. (tempo) Após àquela experiência, outras tantas houve.

CECÍLIA

Com o mesmo africano?

MARIANA

Não somente com ele. Também havia homens brancos no quilombo, assim como mulheres e até religiosos.

CECÍLIA

Vosmecê não devia ter se prestado a dar margem a tanta liberdade.

MARIANA

O nosso compromisso professo não é com a liberdade, Irmã Cecília?

CECÍLIA

Não é de certos tipos de liberdade que estou falando, agora.

MARIANA

Que outros tipos de liberdade há senão o único tipo, o de estar livre dos grilhões, das amarras e das paredes gélidas de um cárcere? Isso não é contraditório? Por acaso existe mais de um tipo de liberdade?

CECÍLIA

O teu relato, por Deus! Concentra-te nele!

MARIANA

A verdade é que eu fui descoberta! Meu pai empreendeu uma busca de tal proporção atrás de mim, que não poupou esforços financeiros. Nem mesmo para destruir o quilombo.
CECÍLIA

Como vosmecê foi descoberta?

MARIANA

 (sussurra) Nua.

CECÍLIA

Nua?

MARIANA

Sim. Na noite anterior à destruição do quilombo, eu havia me deitado ao relento com um dos guerreiros quilombolas.

CECÍLIA

Poupe-me desses detalhes... E o que aconteceu depois?

MARIANA

Fomos descobertos dormindo juntos. Somente depois disso é que o quilombo foi destruído. Ele era um homem lindo. Foi amarrado feito um bicho e levado comigo até à presença do meu pai.

CECÍLIA

Foi quando vosmecê viu o teu pai pela última vez.

MARIANA

Sim. E eu nunca havia visto os feitores do meu pai com tamanha ferocidade como naquele dia. Eu estava apenas coberta com alguns trapos de pano e ali, diante do meu pai, eu tive que assistir a tudo aquilo.

CECÍLIA

O que aconteceu?

MARIANA

Forçaram-me a olhar para aquela cena. E meu pai gritava para mim: “Aprenda agora, desgraçada, o que é o poder de um pai!” E o algoz desceu a catana sobre o membro do guerreiro.

CECÍLIA

Jesus Cristo!

MARIANA

Eu emudeci, tamanho o horror da cena. E meu pai desfechava: “Se isto só não basta, sua perdida, olhe agora!”. Eles o despedaçaram inteiro.

CECÍLIA

Deus do Céu!

MARIANA

Era uma carnificina. Pareciam chacais sobre um outro animal. Um esquartejamento de um corpo não é a imagem e a semelhança de Deus... (silêncio) E então, num único golpe eles cortaram a cabeça do guerreiro. E eu jamais irei esquecer essa imagem.

CECÍLIA

E teu pai?

MARIANA

D. Francisco me olhou uma última vez, pisando em glória.

CECÍLIA

O que fizeram contigo?


MARIANA

Ele me falou, no meio de testemunhas e eu ali, com parte do meu corpo à mostra: “eu te deserdo. Não te conheço mais. De hoje em diante, não tenho mais descendente! Que tua lembrança seja maldita, que a terra por onde pisar seja salgada, e que deixe de usar o meu sobrenome para sempre. Que me esqueça! Levem-na para bem longe, para onde eu não possa jamais retornar a vê-la” .

CECÍLIA

Eu não sabia que vosmecê tinha sido deserdada. Isso explica porque veio parar no Desterro. Eu lembro da época em que vosmecê chegou, tida como órfã ou indigente. Estava desfalecida de fome e fraqueza.

MARIANA

Eu não lembro de nada. Quando me percebi, estava vestida. E de hábito.

CECÍLIA

Vosmecê era um grande mistério, quando chegou ao Desterro.

MARIANA

Como então vosmecê soube quem eu era?

CECÍLIA

Isabel, uma negrinha que te reconheceu quando vosmecê chegava. Ela viu teu estado, ficou horrorizada, segredou tua origem a alguém do Desterro. Por fim, a Madre me ordenou que eu encontrasse alguém para ajudar. Isabel se foi para sempre depois deste episódio, talvez por medo, e nunca mais foi vista.

MARIANA

Por outro lado, vosmecê me concedeu o Dr. Gonçalo.

CECÍLIA

Não foi fácil percorrer ladeiras, perguntar a muita gente, percorrer todos os meandros dentro dos limites fortificados da Cidade, até encontrar a pessoa certa.

MARIANA

A pessoa certa.

CECÍLIA

Ele precisava ver teu estado físico, fazer a notação de que vosmecê estava viva de fato e finalmente partir em busca de teu devido dote. (silêncio) Vosmecê teve que mostrar o teu rosto ao Dr. Gonçalo, não teve?

MARIANA

Sim, eu tive. Ele detinha um documento oficial que exigia ver meu rosto. (sorri) Ele precisava se certificar de como eu era.

CECÍLIA

Mas, se a partir daí, o Dr. Gonçalo conseguiu de D. Francisco o pagamento do teu dote ao Convento do Desterro, não consigo ver a ligação entre isto, a prisão dele e este teu sentimento de culpa.
MARIANA

A não ser que eu e Gonçalo tenhamos nos apaixonado. (abre um sorriso, e após ver a expressão grave de IRMÃ CECÍLIA, fecha o sorriso).
(luz em resistência)



CENA 6

(Sinos.)

MARIANA

 Vosmecê não tem que participar do ofício?

CECÍLIA

A reverenda Madre me reservou para que eu estivesse sempre contigo. Eu disse a ela que vosmecê está bastante mal.

MARIANA

Pois não mentiu. Para mim, as quatro paredes desta cela se transfiguram gelidamente no cárcere de Gonçalo.

CECÍLIA

Vosmecê não devia dizer blasfêmias.

MARIANA

Já não basta minha penitência?

CECÍLIA

Eu muito que tenho te trazido pão, água e frutas do nosso pomar, mas vosmecê tem evitado comer. Se tua penitência é esperar pelo teu último suspiro em prol da saída do Dr. Gonçalo da Cadeia Pública, muito te admiro. Tua determinação em te tornar mártir beira as raias da insânia.

MARIANA

Eu já pedi a vosmecê a extrema unção.

CECÍLIA

Insânia. Blasfêmia. Heresia.

MARIANA

Irmã Cecília,  vosmecê sabia que o significado de teu nome está associado à cegueira?

CECÍLIA

E no entanto, eu enxergo com muito maior distância do que vosmecê, Irmã Mariana, cujo pensamento está única e exclusivamente voltado para o aqui e o agora. E nada mais.

MARIANA

Cecília, eu preciso tirar Gonçalo da prisão, e só vosmecê pode me ajudar!

CECÍLIA

Não vejo lógica pelo fato de que vosmecê alega estar “apaixonada” pelo Dr. Gonçalo, uma vez que nem sabe sequer se ele continua vivo ou, sabe-se lá, se foi desterrado para a África.

MARIANA

O que vosmecê está sabendo? Por que vosmecê não me traz informações sobre ele? Por que vosmecê não me traz mais cartas? Por que me condena desta forma?

CECÍLIA

Eu não trago cartas por que não há. Simplesmente não há. Não há.

MARIANA

E não existe “alegação” alguma em eu dizer que estou apaixonada por ele, pois é a plena verdade. E ele também está apaixonado.

CECÍLIA

Delírio teu. Delírio de juventude, ilusão pura. Este homem é conhecido nas ruas da Cidade. Este homem tem toda uma vida lá fora!

MARIANA

Este homem tem toda uma vida aqui dentro de mim!

CECÍLIA

Eu vou chamar a Madre Superiora!

MARIANA

Não! Eu preciso apenas que vosmecê me escute em segredo de confissão!

CECÍLIA

Eu já ouvi o suficiente!

MARIANA

O quanto é o suficiente para a culpa?

CECÍLIA

Vosmecê não sabe o que está dizendo!

MARIANA

Gonçalo entrou diversas vezes em minha cela! Já nos amamos inúmeras vezes aqui! Várias, várias, várias vezes! Tem sido finalmente o amor, e não mais somente pele, e não mais somente corpo! Até Gonçalo aparecer, eu não tinha conhecido o aconchego, a carícia, o sorriso tolo, o passar dos dedos por entre os cabelos. Eu não sabia o que era o desejo ardente e singelo até ouvir a frase: “amo vosmecê, mulher de uma vida inteira”, Gonçalo me ensinou o pouco que eu sei, mas este pouco que eu sei já me basta!

CECÍLIA

Gonçalo de Melo tem toda uma vida lá fora! Este homem é um poeta!

MARIANA

Eu sei.

CECÍLIA

Este homem deve ter tido todo tipo de mulher, ainda mais aqui, na Cidade da Bahia! Imagine! Todo tipo de mulher, de estrangeiras a meretrizes, de mulatas a negras forras, de escravas a... Religiosas! Vosmecê está variando seriamente de tuas idéias.

MARIANA

Gonçalo é um espírito livre, tal como eu.

CECÍLIA

Este homem está preso!

MARIANA

Por minha causa!

CECÍLIA

Ele é uma voz ferina, um perigo para os bons costumes da Bahia!

MARIANA

Bons costumes da Bahia? Ele é famoso! No Terreiro de Jesus, e mesmo durante os sermões na Igreja da Ajuda, quando muitos olhares lascivos são trocados, cartinhas, bilhetinhos e mãos sorrateiras chegam a lugares impressionantes, todos já ouviram falar de seus poemas, já o viram declamar ou sabem de tudo aquilo que ele já escreveu!

CECÍLIA

Irmã Mariana, este homem pode ser degredado para a África!

MARIANA

Justamente por isso precisamos ajudá-lo! Vosmecê foi quem trouxe uma por uma das cartas de Gonçalo até minha pessoa! Sou-lhe eternamente grata, vosmecê muito bem sabe, mas se há algo que eu tenho mais de uma vez de pedir a vosmecê  é que me ajude, por tudo quanto é mais sagrado, a tirá-lo de lá da prisão!

CECÍLIA

Vosmecê está cansada, está dizendo tolices! Por que não dorme?

MARIANA

(senta-se na cama) Sabia que existem sonetos inteiros de Gonçalo que eu sei de cor? Vosmecê gostaria de ouvir algum deles?

CECÍLIA

Não, por favor, me poupe disso. (silêncio) Escute, Irmã Mariana, eu não vou fingir que não sei que muitas de nós, aqui no Desterro, têm uma aparente vida dupla. Que muito se sabe, do lado de fora destas paredes, destes muros do Convento, da fama que muitas de nós carregam aqui dentro. E mesmo da vida nada clarissa de muitas outras celas, por vezes luxuosas. Que não se sabe das trocas de regalos. De alguns casos de visitas íntimas em muitas de nossas celas. Daquelas irmãs que se perdem na loucura. Eu não faço olhos moucos, Irmã Mariana. Mas é que eu preciso proteger vosmecê dessas agruras, dessas infelicidades da carne.

MARIANA

Mais uma vez sou-lhe grata, como já te disse. Mas é que eu já me sinto muito protegida. O meu amor por Gonçalo é uma espécie de bússola. Ela aponta sempre um Norte, mesmo em minhas noites mais enevoadas.

CECÍLIA

Quanta blasfêmia, meu Deus! Quanta sandice vosmecê está dizendo, quanta contradição! Afinal de contas, qual é a diferença entre esse “presumível” amor do Dr. Gonçalo por vosmecê e tudo aquilo que vosmecê já me relatou?

MARIANA

A diferença, minha boa Irmã Cecília? Para mim ela é muito clara. Enquanto o africano rasga a minha roupa para me possuir, sou eu quem me desnudo de minhas vestes de linho branco diante de Gonçalo, para fazermos amor. Há uma diferença entre a violência deliciosa do rasgar e a languidez impiedosa do despir. (silêncio) Gonçalo me contava das ameaças que sofria por causa de seus poemas, principalmente depois que conseguiu coagir D. Francisco, meu pai, a pagar a vultosa soma de trinta mil cruzados como meu dote ao Convento de Santa Clara do Desterro. E aqui estou.

CECÍLIA

Trinta mil cruzados?

MARIANA

Exatamente. Dinheiro todo vindo do açúcar e da chibata. É evidente que Gonçalo obteve uma comissão do Convento do Desterro, em troca do serviço. Em contrapartida, bilhetes e mais bilhetes de ameaça rondavam seus dias e suas noites, e mesmo tocaias com paus e pedras o aguardavam aqui e ali, infestando as ladeiras a todo instante.

CECÍLIA

Eu não sabia de nada dessa história. Somente trazia e enviava cartas.

MARIANA

E aqui, em minha cela, enquanto ele me contava de suas andanças e aventuras, com aquele sorriso que me deixa louca, eu o coloquei sentado aqui em meu catre, e me agachei no chão diante dele para tirar suas botas de couro e lavar seus pés. Uma atitude bíblica, como Maria Madalena fez com os pés de Nosso Senhor Jesus Cristo.

CECÍLIA

Irmã Mariana, tuas comparações são muito temerosas. Beiram o sacrilégio.

MARIANA

Sacrilégio? Vosmecê diz sacrilégio? Gonçalo sabe o que faz comigo. Ele me conhece, esse homem. E conhece cada meandro meu. Á medida que eu lavava os pés de Gonçalo com todo o esmero, ele ia me beijando o rosto. Plenamente. E Gonçalo entrelaçava minha cabeça por entre os seus dedos, e me violava os cabelos, beijando as orelhas. E eu pousei minha cabeça sobre o seu colo, as mãos dele abriam caminho pelas minhas costas, e declinavam dentro da túnica até surpreenderem um dos meus seios. Enquanto isso, seus pés subiam pelas minhas pernas, até me decifrarem o sexo e os pêlos. Gonçalo, num arroubo, me vira inteiramente o corpo, as mãos dele nos meus seios, e a boca cravada em minhas costas, o doce sabor da sua virilha me entorpecendo. E ele me levanta, dos pés à cabeça, a soma de tecidos que me escondiam, e me revelavam agora, doce, minha pele, meus braços quentes, o abraço pelas costas, o afago da nuca, ah, e a disposição de seu membro, era como se ele soprasse “eu te amo” a cada nova investida. E Gonçalo me revira uma vez mais, eu de costas para ele, dois corpos ajoelhados, quase rezando, agradecendo em carícias o dia em que foram criados (para IRMÃ CECÍLIA, que se ajoelha diante dela, na cama, e começa a descobrir um dos pés de IRMÃ MARIANA, sob o roupão, passando a lavar o pé com água da moringa) O que está fazendo?


CECÍLIA

Continue.

MARIANA

Gonçalo, já tendo traduzido em dedos todo o meu corpo, dizia: “O Corpo de Cristo está na hóstia consagrada! O Corpo de Cristo está na hóstia consagrada!” E eu cravo meus olhos no crucifixo diante de mim. (durante esta fala, a própria IRMÃ MARIANA vai descobrindo o outro pé, e começa a subir com ele, lentamente, pela lateral do corpo de IRMÃ CECÍLIA).

CECÍLIA

O que está fazendo?

MARIANA

Gonçalo me penetra seu cravo ardente, ladrão por entre as pernas, voraz! E com o crucifixo diante de mim, eu o pego e somo sua madeira aos meus seios, e ele me desenlaça sobre o meu catre, me avassala, os dois, deitados sobre o crucifixo. E o amor daquele homem me crivava num calvário de delícias ao som de um único mantra: “Amo vosmecê, mulher de uma vida inteira. Amo Vosmecê, mulher de uma vida inteira”.

(neste instante, IRMÃ CECÍLIA agarra IRMÃ MARIANA e ambas se beijam, e se entregam em ardor. IRMÃ CECÍLIA rasga as vestes de linho branco de IRMÃ MARIANA, despindo-a parcialmente, e ambas são conduzidas em total insânia e descontrole. Quando se dão por si, IRMÃ MARIANA se afasta, deixando IRMÃ CECÍLIA de lado e que, atônita, recompõe-se, ficando de pé, e deixa com IRMÃ MARIANA uma carta)

MARIANA

O que é isso? (pega a carta e abre)


CECÍLIA

Leia.

MARIANA

Uma carta de Gonçalo! De dias atrás! Vosmecê me disse que não havia.

CECÍLIA

Leia. (coloca-se à parte, tentando se controlar)

MARIANA

É autêntica! É dele, mesmo! É de Gonçalo! Vosmecê mentiu pra mim!

CECÍLIA

(berra) Leia!

MARIANA


Aos vinte e um dias de novembro de hum mil seiscentos e noventa e dois. Amor meu, serei breve e saudoso de ti, Mariana.”

(IRMÃ CECÍLIA tenta se reaproximar, IRMÃ MARIANA se esquiva)

MARIANA

“Os ditos senhores de bem desta Câmara da Comarca de São Salvador estão selando o meu amargo destino. Em poucas palavras, amor meu, há o risco de degredo para as terras de Angola, em África, por infindáveis seis anos”.

(IRMÃ MARIANA fica consternada, IRMÃ CECÍLIA procura acariciar os cabelos dela, que se esquiva uma vez mais)

MARIANA

“Estou mergulhado em pavor, Mariana adorada. A minha condução ao degredo, pelas Ordenações Régias, é a própria morte em vida. Pretendem me condenar por perjúrio. Temo por ti. O desespero me acompanha, as horas reviram em angústia e incerteza. A saudade e esta ausência tua me mortificam, minha Mariana. – Gonçalo! – Prefiro morrer a jazer em terras de África, a ter de esquecer teu rosto, a lembrar que te amei um dia.”

(IRMÃ CECÍLIA se aproxima)

MARIANA

(esquiva-se) Não! (desesperada) Vosmecê precisa me ajudar e é agora! Gonçalo corre risco! As horas urgem! Se é que ele já não foi degredado! Meu Deus!

CECÍLIA

Mariana.



MARIANA

(esquiva-se) Não! Vosmecê mentiu para mim, por quê? Esta carta é de semanas atrás! Estou esfarrapada! Ao que me condenas? Ao que vosmecê pretende me condenar, nessas masmorras? Preciso ajudar Gonçalo!

CECÍLIA

Esqueça isso!

MARIANA

Eu tenho trinta mil cruzados! Vosmecê vai tirar Gonçalo da prisão! Ou eu mesma irei!

CECÍLIA

Como vosmecê vai até à prisão se está esfarrapada?

MARIANA

Deus meu, esta carta é de semanas atrás!

CECÍLIA

Dias atrás!

MARIANA

Eu tenho dinheiro! Meu pai pagou ao Desterro!

CECÍLIA

Mariana, pare! Teu pai deserdou vosmecê, lembra?

(IRMÃ MARIANA agarra IRMÃ CECÍLIA e a assombra com um beijo sufocante, largando-a em seguida)

MARIANA

Por clemência, me ajuda! Me ajuda como Santa Clara ajudaria qualquer uma de suas filhas!

CECÍLIA

Eu não sou Santa Clara!

MARIANA

Eu tenho dinheiro!

CECÍLIA

Vosmecê não tem dinheiro!

MARIANA

Tenho fortuna! Trinta mil cruzados!

CECÍLIA

Não pertencem mais a vosmecê, não percebe? É o teu dote pago por teu pai ao Desterro!

MARIANA

Eu vou salvar Gonçalo!

CECÍLIA

Mariana!

MARIANA

Cecília, me ouve! (põe IRMÃ CECÍLIA para sentar)  Senta e me ouve! Vosmecê vai ao cofre do Convento!

CECÍLIA

Insânia!

MARIANA

São trinta mil cruzados, Cecília! O meu pai pagou ao Desterro!

CECÍLIA

Pare, Mariana!

MARIANA

É preciso pegar alfaias de ouro e prata neste valor! As alfaias, Cecília, os ornamentos, o sacrário, o que for! São trinta mil cruzados!

CECÍLIA

Vosmecê está louca!


MARIANA

As alfaias, Cecília! Só vosmecê pode colocar tudo para fora do Desterro!
CECÍLIA

Louca!

MARIANA

Vamos comprar esses homens! Vamos comprar esses homens dissolutos que se dizem os donos da verdade! Qual é a verdade? É a verdade deles? Vamos comprar essa verdade!

CECÍLIA

Mariana, pelo amor de Deus!

MARIANA

Cecília! (beija-a novamente) Me ajuda!

CECÍLIA

Mariana, vem aqui, no meu colo! Me toca!

MARIANA

Eu vou salvar Gonçalo!

CECÍLIA

Vem pra mim, Mariana, me beija!

MARIANA

Vosmecê vai lá fora e vamos nós duas corromper os poderosos a favor de Gonçalo!

CECÍLIA

Eu não vou cometer tal loucura! Vem pra mim!

MARIANA

Cecília, me escuta! (IRMÃ CECÍLIA tenta acariciá-la, mas IRMÃ MARIANA se esquiva) Os ornamentos de ouro e prata no valor do meu dote! Não servem para mim, servem para Gonçalo!

CECÍLIA

Eu não vou violar o Desterro, Mariana!



MARIANA

(ri) Violar o Desterro! Violar o Convento de Santa Clara do Desterro da Bahia! Todos sabem o que fazemos aqui dentro, Cecília! E todas nós sabemos o que se passa lá fora!

CECÍLIA

Cala-te, Mariana!

MARIANA

As nossas festas! As nossas ancas que balançam ao som dos lundus! A Bahia de Todos os Santos surpreende, vosmecê muito bem sabe disso! Os visitantes, os estrangeiros, esses cronistas, eles nos vêem “saracotear”, é como eles nos vêem! “Saracotear”! E os freiráticos? Tantos outros! Os padres, os vigários – esses mesmos em que eu não confio! – amantes de tantas donzelinhas noviças em suas próprias celas!

CECÍLIA

Cala-te!

MARIANA

 E os encontros furtivos? Os alçapões da igreja, Cecília? Quanto escândalo brota aqui de dentro dessas paredes, não é mesmo? Quantos regalinhos trocados, quantos aneizinhos e leques coloridos em troca de docinhos que fazemos aqui dentro para nossos namorados lá fora! As paredes do Desterro escondem a verdade da Bahia, Cecília! E a verdade da Bahia passa...(posiciona a mão diante da vagina) Por aqui! Pelo cono! Pelo montezinho! Pelo clitário, pela ave de rapina, o passarinho! A cousinha, a covinha! Por isso não há limites, entre o que é de dentro e o que é de fora! Cecília, não há limites na Cidade da Bahia! Não há muros que cerquem, nem mesmo há degredos na África que cerquem, Cecília! Somente vosmecê, com o ser amado em teus próprios braços, vosmecê não deu o beijo de misericórdia, isso por que teve medo da Inquisição, Cecília! Não há limites na Cidade da Bahia!

CECÍLIA

Cala-te, Mariana!

MARIANA

Ajuda-me a salvar Gonçalo, Cecília! Ou então me concede a extrema unção!

(IRMÃ CECÍLIA agarra IRMÃ MARIANA à força, para beijá-la e seduzi-la, ainda é mais forte fisicamente, mas percebe a não-reação de IRMÃ MARIANA, e a larga em seguida)

MARIANA

Eu sinto muito... Mas é outra pessoa que eu amo.


(novo tapa de IRMÃ CECÍLIA em IRMÃ MARIANA, que desta vez revida com tapa. Olham-se. IRMÃ CECÍLIA sai, e IRMÃ MARIANA fica perdida).


(luz em resistência)

CENA 7

(Sinos e atabaques. IRMÃ CECÍLIA está ausente por dias. Tudo se mistura na mente em rodopio de IRMÃ MARIANA. Ela se debate, reza, caminha pela cela, balbucia coisas, vai se consumindo, emoções em vias de ruir. Mariana chora, grita, emudece. Já não sabe mais o que diz. Delira. Sinos e solidão. IRMÃ MARIANA, em cena, está mergulhada em fraqueza e murmúrios desconexos. Ela reza, tem a túnica rasgada, partes do corpo à mostra, e mesmo assim  veste o véu, retira-o, retorna à escrita de cartas, dorme muito, remói-se desesperada por uma culpa que imagina ou sabe ter. Está sem notícias, o que a mortifica.  A direção tem total liberdade para criar o tempo e o texto, dispondo do discurso da personagem. Como sugestão de texto, segue abaixo).

MARIANA

Eu não sou Santa Clara! Eu não tenho vocação para ser Santa Clara! Ela fugiu de uma festa no Domingo de Ramos. Os monges esperavam por ela. Ninguém me esperava. Nem minha mãe, nem meu pai, nem o Desterro me esperava. Eu não sou Santa Clara! Os pais de Clara foram atrás dela até o mosteiro, mas ela se agarrou no altar e mostrou os cabelos cortados por São Francisco. Ninguém veio atrás de mim. Eu não sou Santa Clara. Minha mãe Clara, perdoa-me, por que eu não sei o que faço! Cubra-me com teu cobertor em minha noite gélida, neste cárcere do meu pecado, neste fogo da minha culpa! Senhores da Bahia, todo poderosos, vendilhões, corruptos e corsários! Meu pai! Santo Ofício! Mostro minha carne a ti, a minha pele alva e nua, minha carne pelo teu sangue que derramas! Pelas devassas que promoves! Pelas vidas trituradas nas cordas e pelas almas ceifadas pela fogueira! Eu te esconjuro! Pelo teu pecado que não tem perdão! Pelo teu pecado que não tem perdão!

(luz em resistência)

CENA 8

(Luz em resistência. IRMÃ MARIANA está sentada, em pé, desconexa, balbucia coisas)

MARIANA

Hoje é desgraçado, mas amanhã será melhor porque ontem um dia foi! Hoje é desgraçado mas amanhã será melhor porque ontem um dia foi!

(IRMÃ CECÍLIA entra com uma carta na mão. As duas se olham, IRMÃ MARIANA deixa de encará-la. IRMÃ CECÍLIA faz menção de entregar a carta a IRMÃ MARIANA, que foge da carta, mas continua balbuciando sem parar. IRMÃ CECÍLIA, com aspecto grave, põe-se a ler o que está escrito)

CECÍLIA

“Mariana, amor meu. Desde o infortúnio do dia de hoje, mais seis anos me guardam longe de ti. Quiçá para sempre. Com base nas Ordenações Régias, os autos da Câmara da Cidade de São Salvador, apoiados em todos os seus juízes e senhores meretrizes, condenaram-me a seis pavorosos anos de degredo na costa de Angola, em África. Não tenho palavras, amor meu. É a morte.”

MARIANA

É a morte.

CECÍLIA

“Não tenho mais palavras e infelizmente serei breve. Há um negro de absoluta confiança que te conduzirá esta carta e, quando tais letras chegarem a ti, provavelmente estarei a bordo de uma caravela, em pleno Atlântico, mirando esta terra pela última vez.”

MARIANA

É a morte.

CECÍLIA

“É um século lamentável, este. Estamos mergulhados na barbárie a tal ponto, que somos a própria barbárie sob a forma de senhores, de escravos, de militares, de religiosos e de miseráveis... Homens e Mulheres... Todos loucos, cada um à sua maneira.”

MARIANA

É a morte.



CECÍLIA

“No entanto preocupo-me contigo... (tempo. lê o resto da carta, procura dobrar o papel, IRMÃ MARIANA percebe e, num arroubo, tira de IRMÃ CECÍLIA a missiva)

MARIANA

(começa a ler de onde IRMÃ CECÍLIA parou) “No entanto, preocupo-me contigo, minha Mariana. Um visitador do Santo Ofício irá ter contigo, tenha cuidado, seja zelosa com as palavras, observa tua respiração, não te mostra ofegante, não te comprometas. Mariana, haverá uma carga sobre ti, atenta: acusaram-me de sedução conventual, de ter me amancebado com uma religiosa, daí a pena que me delegaram. Souberam sobre nós, não imagino de que forma. Eu não fui torturado e jamais te denunciaria. Temo muito por ti, amor meu. Como eu sempre te disse: a Bahia de Todos os Santos surpreende. Amo vosmecê, mulher de uma vida inteira. Adeus. Nesta cidade, seis de dezembro de hum mil seiscentos e noventa e dois.” (dobra a carta. Sem olhar para IRMÃ CECÍLIA) Por que fizeste?

CECÍLIA

Por merecimento.

MARIANA

Por que fizeste?

CECÍLIA

Pára de repetir isso.

MARIANA

Por que fizeste? Qual é a extensão do teu despeito?

CECÍLIA

Olha para mim, Mariana.

MARIANA

Eu tento soltar um grito dentro de mim, mas não sou suficientemente forte para tanto. Eu tento proferir uma palavra dentro de mim, mas não estou suficientemente forte para tanto. Eu não tenho como descrever o que sinto.

CECÍLIA

Pára com isso, Mariana. (sinos) Os sinos! São as leituras de laudes! Venha comigo, Mariana! Venha rever as irmãs, as crianças e a Madre Superiora, como vosmecê tanto deseja!

MARIANA

Eu acreditei em vosmecê. Estive sob segredo de confissão durante todo esse tempo.

CECÍLIA

Eu vou preparar os salmos para a cantoria.

MARIANA

(para IRMÃ CECÍLIA) SEU DEMÔNIO! BIZARRIA! Não há perdão para o teu pecado, anjo caído!

CECÍLIA

Mariana!





MARIANA

Onde estão as tuas hostes? Lá fora? Além dos muros do Desterro? São os senhores da Bahia? Onde estão as tuas hostes? Aqui mesmo, talvez? No breu do teu travesseiro, na tua fronha de lascívia? Nos teus pesadelos moribundos?

CECÍLIA

Mariana.

MARIANA

Não te direi mais nenhuma palavra em segredo, seu demônio!

CECÍLIA

(sinos) Os sinos, Mariana! Eles apontam o celestial!

MARIANA

Cala-te, por Deus! Ele te fez à Sua imagem e semelhança? Fez? Qual a diferença de vosmecê para uma chibata? Para um tronco? Para um corpo esquartejado? Qual a diferença de vosmecê para tudo isso? (parte para cima de IRMÃ CECÍLIA, que consegue se desvencilhar dela) Eu sinto nojo! Se eu pudesse, eu arrancava a minha própria pele, tamanho nojo de pertencer à raça humana!

CECÍLIA

Mariana!

MARIANA

Cala-te, não diga mais nada! Eu já te pedi tantas vezes a extrema unção, o último sacramento, mas vosmecê só tem me tomado ódio. De que vale este mundo? De que vale um amor? De que vale um segredo em confissão? De que vale este linho branco que se coloca em torno do meu corpo? Pois bem, aqui estou! Inerte e presa feito um boi, pronta para o abate! Que a Cidade da Bahia enfie uma faca por dentro de minha testa e que minha morte seja digna dos matadouros!  Povo louco e sandeu, aqui estou entregue e em desalinho para o seu deleite! Não me toques, não chegue perto de mim! Tudo aquilo que me fizeram conhecer de crenças, de verdades, de pecados, de que me serve  isso tudo? (pega o crucifixo, aponta-o para IRMÃ CECÍLIA) É nisso que vosmecê acredita?

CECÍLIA

Pára com isso, Mariana!

MARIANA

É neste Deus misericordioso que vosmecê acredita? Responda!
CECÍLIA

In Nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sanctus, Amen.

MARIANA

É n’Ele que vosmecê acredita? O mesmo Deus que em nome d’Ele o teu vizinho, o teu pai, qualquer um na rua pode ser levado à tortura? Responda! É neste Deus que vosmecê confia? Não é em nome d’Ele que nosso corpo miraculoso se tornou a própria vasilha onde estão o sacro e o profano? O Senhor e Lúcifer? Juntos, no mesmo corpo de mulher? Pois bem, aqui estou para o abate, anjo caído.

CECÍLIA

(começa a rezar, durante todo o próximo discurso de Mariana)

Ave Maria, gratia plena,
Dominus tecum,
Benedicta tu in mulieribus
Et benedictus fructus ventris tui Iesus
Sancta Maria, Mater Dei
Ora por nobis pecatoribus
Nunc et in hora mortis nostrae
Amen

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi
Miserere Nobis
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi
Miserere Nobis
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi
Dona Nobis pacem

MARIANA

Aqui estou, demônio! Pronta para a tua fogueira celestial! Pronta para as tuas harpas de enxofre! Tua luz, tuas trevas! Estou pronta! (IRMÃ CECÍLIA vira o crucifixo, o tempo todo nas mãos de IRMÃ MARIANA, com ela segurando firme, desta vez sobre a testa dela) Sou mulher, tenho Deus e o Diabo jantando e brindando com pão e vinho, na minha última ceia com direito ao beijo da morte, e com a mesa preparada aqui dentro! O cono do mundo, o cono da Bahia! Da Bahia de Todos os Santos e Demônios! Tu, Cecília, Irmã Cecília da Piedade, mentirosa, eu te confessei em segredo a minha vida! E como me retribuis? Quebrando esse elo de confiança! (empurra IRMÃ CECÍLIA, tira ela do crucifixo, e o quebra, apontando-o para a vagina dela a parte quebrada) Pois eu também quebro este elo, e te devolvo em amor! Pronta para te amar!

CECÍLIA

Pára com isso, Mariana!


MARIANA

Aqui estou com o teu Deus! Agora Ele quer se encontrar com Lúcifer aí dentro de vosmecê! Ele quer brindar, quer jantar de tuas carnes, tuas vestes, tua madre! E de mãos dadas com o Diabo, aí dentro, Deus vai percorrer toda a tua ave de rapina!

CECÍLIA

Pára! (num arroubo, toma o crucifixo de IRMÃ MARIANA e o joga no chão)

MARIANA

Aqui vosmecê me tem cativa, não é? Sou o teu bichinho, a tua prisioneira enfraquecida e rota, arfando em desespero! Pois aqui estou, munida com o último quinhão de que disponho, a única alfaia de ouro e prata que realmente carrego comigo! É a minha pele, não é, Irmã Cecília? A minha pele, linda e ardente, alva e nua, exatamente como deliram os teus desejos! Aqui está! Sou o teu cordeiro, tire os meus pecados do mundo! (rasga completamente a roupa, fica nua diante de IRMÃ CECÍLIA) Agora trespassa teu ódio por entre a minha carne! E ME CONCEDE A EXTREMA UNÇÃO! (desmaia)

CECÍLIA

(pega Mariana, vai ao chão com ela, segurando-a firme, numa pose que lembra as madonas renascentistas) MARIANA!!! (beija IRMÃ MARIANA ardente e desesperadamente)

IRMÃ MARIANA morre.


(IRMÃ CECÍLIA permanece imóvel, com IRMÃ MARIANA nua em seus braços. IRMÃ CECÍLIA fica atônita, sem ação alguma, olhando para o nada. Ao longe, os sinos tocam para os ofícios, enquanto a luz se desfaz em resistência)


FIM

(Registrada na Biblioteca Nacional sob No. 440010, em 08/09/2008) 
solicitações pelo e-mail jobimneto.ruy@gmail.com