DE CANOA E DE REDE
de Ruy Jobim Neto
Registrado na Bibilioteca Nacional sob No. 461916, em 23/06/2009
(Noite. VITALINO Pescador está alerta, tem um pequeno lampião à sua mão. Há um arpão em cena, umas luminárias com outros lampiões e um barco de pesca, muito usado, com dois remos. Uma rede divisa a cena, ele detém uma ponta, o restante segue em direção à platéia. Não há peixe. Não há um casebre, é como se VITALINO pudesse, em seus delírios, andar sobre as águas do mar. Tudo o que conhece da vida está ali.)
Personagem: VITALINO PESCADOR
Época: atual
Local: uma vila de pescadores em algum ponto do Litoral brasileiro
..................
VITALINO
(VITALINO Pescador, no início da cena, está deitado dentro do barco. Tem o lampião à mão. Olha para a platéia, olha para os lados, sai aos poucos, leva o lampião consigo. Quando “ouve” algo vindo do fundo da platéia, ele olha, fica em pé, tem cuidado onde pisa, mas em seguida admite certa coragem e segue, como se andasse por cima das águas. Sorri quando sente molhar, não liga, “ouve” de novo o barulho, levanta o lampião)
(alerta, em direção à platéia)
ALGUÉM? ...
(desanimado, abaixa o lampião)
ALGUÉM?
(pausa)
(contemplativo, quase esboça um sorriso)
É OCÊ, NÉ?...EU SABIA...
(mira novamente o lampião)
CHEGA PERTO PAMODI EU PODÊ TI VÊ MELHÓ.
(clama)
VEM!
(pausa)
(triste)
NÃO VEM? ...PODE VIM...SEM MEDO...
(esperto)
TODOS OS TEUS AMIGOS TÃO AQUI. EU POSSO VER NOS OLHINHOS DE CADA UM DELES.
(sorri)
OCÊ SABE QUE EU SEI O NOME DELES TUDINHO? É...EU SEI...
(olha para a platéia, como se fossem peixes)
UM PEIXE PODE SER CEGO OU SURDO...
(sorri, bobo)
MAS ELE TEM UMA NOÇÃO.
(vai olhando)
ESSE AQUI...É CEGO E SURDO, COITADO. MAS SENTE CHEIRO QUE SÓ ELE, SENTE O MEU CHEIRO AQUI DENTRO D’ÁGUA QUE É UMA COISA LINDA!
(olha para um ponto)
SENTE O SEU TAMBÉM!
(retorna a olhar a platéia)
ESSE AQUI EU GOSTO DE DIZER O NOME – CARANHA!
(aponta outro)
BONITO! TEM EM TUDO QUE É LUGAR POR AÍ, QUE EU SEI.
(sorri)
CAVALA! ESSE AÍ É BONITO QUE SÓ ELE.
(finge balançar o bote)
OOOOPPAA!!!
(sorri)
QUASE QUE EU CAIO!
(agacha-se)
EU SEI O NOME DE CADA UM POR AQUI, ATÉ UNS NOMES EU DÔ PRA ELES...
(sorri)
É ZULMIRA, É ARIOVALDO, É PEDRÃO, É PAULINA. EU GOSTO DESSES NÔMI...
(pausa)
(grave)
TUDO AMIGO MEU.
TUDO AMIGO MEU.
(pausa)
(esboça sorriso)
QUE NEM OCÊ.
(mostra)
Ó, PRA TU VÊ QUE SOU HÔMI DE BEM, EU NEM TÔ COM ARPÃO AQUI, DEIXEI LÁ NA PRAIA, NA CANOA, BEM SEGURA...BEM LONGE DAS VISTA....
(pausa)
(sorri)
EU VIM EM PAZ. VIM CONVERSÁ.
(grave)
TANTO É QUE A MARÉ TÁ BAIXA, EU PODIA COMEÇÁ MINHA PESCARIA AGORA, QUE TÁ BOM! MAS NÃO...
(pausa)
(sorri)
EU VIM SÓ CONVERSÁ.
(levanta o lampião uma vez mais, olha para os lados)
NÃO VAI ME DEIXÁ FALANDO SOZINHO AQUI NÃO, NÉ?
(sorri)
SABE... DA PRIMEIRA VEZ QUE EU TI VI... EU NEM ACREDITEI, CAÍ PRA TRÁS. NEM DISSE PRO POVO, SENÃO IAM MANGÁ DI MIM. AH, SE IAM.
(certeiro)
CONHEÇO.
(preocupado)
AGORA TU É QUE É OUTRA COISA. OUTROS PORÉM. NINGUÉM IA ACREDITÁ, IAM DIZÊ: “Ó, O VITALINO, SABE ELE? ELE FICOU É DOIDIM! DOIDIM DE TUDO, DE PEDRA! AGORA DEU É PRA VÊ COISA NO MAR!”
(pausa)
(grave)
ASSIM É QUE ELES IAM DIZER DI MIM.
(sorri)
MAS TU NÃO.
(procura com os olhos)
SABE QUE...EU ATÉ TE BATIZEI?
(ri)
É VERDADE! EU TE DEI UM NOME. VÊ SE GOSTA.
(sério, gesticula)
DIONE.
(sorri)
É ISSO MESMO. “A LINDA DIONE”, UMA NINFA. A MINHA NINFA.
(pausa)
(curioso)
GOSTOU? ...GOSTOU, ... DIONE? POSSO TE CHAMAR ASSIM?
(sério)
POIS EU VIM TE FAZER UM PEDIDO, SABE? COMO TU É ASSIM, UMA NINFA, UMA SEREIA – SE É QUE EU POSSO TE CHAMAR ASSIM – EU TENHO QUE DIZER UMA COISA.
(pausa)
EU SOU NOVO AQUI NA VILA DE PESCADÔ. ME CONHECEM POUCO. ACHAM QUE SOU LOUCO, UM MALUCO QUE VIVE CONTANDO HISTÓRIAS, ISSO SIM.
(sorri)
E EU GOSTO MESMO! TENHO UM MONTE DE HISTÓRIA PRA CONTAR. MAS NÃO É HISTÓRIA DE PESCADÔ, NÃO.
(aponta pro fundo do mar)
É HISTÓRIA DE GRANDES MARINHEIROS, GENTE QUE EU VI NOUTROS SONHOS AÍ. COISA DE NAVIO GRANDE, MONSTRO MARINHO...TEM UMA QUE EU GOSTO MUITO, QUE É A DO HIPUPIARA.
(todo narrativo, empolgado)
JÁ OUVIU FALAR DELE? O TAL QUE O CAPITÃO MATOU PORQUE PENSARAM QUE O BICHO MATOU UM ÍNDIO E O CAPITÃO TINHA UMA ESCRAVA, QUE ERA ÍNDIA, E...
(pausa)
(murcha)
...OCÊ NÃO ESTÁ INTERESSADA EM MONSTRO MARINHO, NÉ?
(pausa)
OCÊ AÍ, QUE É TÃO LINDA DE MORRER...
(pausa)
(grave)
POIS, SABE... EU TÔ GOSTANDO MUITO DE NALDINHA.
(sorri, como se fosse para as estrelas)
NALDINHA...
(pausa)
(grave)
NALDINHA É FILHA DE MESTRE LUIZ, O CHEFE DA ALDEIA DOS PESCADÔ, SABE?
(pausa)
POIS É... DIONE...
(ri)
EU GOSTO DESSE TEU NOME, HEHE... DIONE!
(contemplativo)
NALDINHA...
(como se fosse respondendo à sereia com uma pergunta)
NALDINHA? ....
(suspira)
NALDINHA...É A MULHÉ DA MINHA VIDA. EU DISSE ISSO A ELA, BEM ASSIM...
(imita, com orgulho)
“NALDINHA, TU É A MULHÉ DA MINHA VIDA!”
(pausa)
(sorri, e dança)
AHAHAHAH! TÔ DANÇANDO EM CIMA DO MAR! EM CIMA DA ÁGUA! QUI NEM NOSSO SENHÔ JESU CRISTO! TÕ É MUITO FELIZ DE TÊ O CORAÇÃO DE NALDINHA!
(contemplativo)
QUANDO EU TIVÉ O MEU BARCO DE PESCA, ELE VAI TÊ ESSE NOME...
(sonhador)
NALDINHA!...
(sorri)
E VÔ COLOCÁ UMA CARRANCA BEM ENORME, CARUDA, BEM NA PROA DO “NALDINHA”, QUE É PAMODIDE AFASTÁ COISA RUIM...
(pára de dançar)
POIS É, DIONE... UM HOMEM FELIZ ASSIM COMO EU, ASSIM, COM UMA NALDINHA NA VIDA, TEM QUE PENSÁ NUMAS COISAS AÍ, PRA MUDÁ O RUMO DA PROSA, NÃO TEM?
(curioso)
OCÊ NUM CONCORDA?
(motivado)
PENSA BEM! É ISSO MESMO!
(firme)
EU TENHO QUE MUDÁ MINHA VIDA! FOI O QUE NALDINHA DISSE PRA MIM, BEM ASSIM:
(imita Naldinha)
“VITALINO –
(explica pra platéia, à parte)
VITALINO SOU EU –
(Naldinha)
TU TEM É QUE MUDÁ ESSA SUA VIDA!”
(sorri, bobo)
E QUANDO A MULHÉ QUE OCÊ AMA, ELA TE DIZ BEM ASSIM, É PORQUE TI AMA MESMO, NÉ?
(pausa)
(para a platéia)
OCÊ NUM CONCORDA?
(sorri)
SOU O HÔMI MAIS FELIZ DESSE MUNDO DE DEUS!
(pausa)
(dança mais um bocadinho)
(paralisa)
É, MAS... Ô, DIONE... EU VIM PEDIR UMA AJUDA TUA.
(pausa)
E EU NÃO SEI NEM POR ONDE COMEÇÁ. TÔ MEIO ASSIM, SEM JEITO, MESMO.
(anda)
SABE, EU PENSEI, PENSEI, PENSEI AQUI COM OS MEUS BOTÃO.
(pára de andar, deixa o lampião ao chão)
E PENSEI MUITO.
(pausa)
MUITO MESMO.
(anda pelo palco, dá uma volta redonda muito grande, pensativo, tenso)
(paralisa diante da platéia)
DIONE.
(silêncio)
(aproxima-se, temeroso)
OCÊ CONFIA NI MIM?
(pausa)
É QUE EU PRECISO DAR UM JEITO NESSA MINHA VIDA. E, SABE COMO É, NA VILA DE PESCADÔ, O POVO É TUDO MUITO TEMENTE A DEUS, SABE DOS PERIGO E DAS ALEGRIA DA LIDA NO MAR. DA SERIEDADE DA VIDA.
(sonha)
DA LIDA DA PESCA. PRA ISSO É QUE EU TENHO QUE TER O MEU BARCO...
(sorri)
O “NALDINHA”...
(grave)
E PRA EU MI CASÁ COM NALDINHA, EU VOU PRECISÁ DA TUA AJUDA.
(pausa)
(enfatiza)
DA TUA AJUDA, DIONE.
(sorri)
SABE, UM HÔMI DA CIDADE UM DIA ME DISSE QUE DIONE ERA UMA NINFA, UMA SEREIA, ELE FALOU...
(gesticula, orgulhoso)
UMA “NEREIDA”.
(faz o sinal da cruz)
ARRE! QUE NOME – NEREIDA – MAS SABE QUE EU ATÉ QUE GOSTEI?
(pensa)
GOSTEI SÓ POR QUE É OCÊ, DIONE...
(sério)
AÍ, QUANDO EU FALEI TEU NOME PRA ELE, ELE DISSE QUE LEU ESSE NOME NUM LIVRO LÁ DE PORTUGAL.
(brincante)
Ó COMO TU TÁ IMPORTANTE. FOI VIRÁ FIGURA ATÉ DE LIVRO LÁ DE PORTUGAL.
(enfatiza)
POR-TU-GAL.
(enfático)
“OS LUSÍADA”, DISSE O HÔMI.
(pausa)
UMA SEREIA COM O TEU NOME.
(sério)
DIONE. BEM ASSIM.
(grave)
POIS É.
(pausa)
ASSIM EU TI PEÇO A SEGUINTE AJUDA.
(pausa)
QUE OCÊ CAIA NA MINHA REDE.
(silêncio)
(gira pelo cenário, desnorteado, instantes depois, pára, decidido)
(pausa)
AÍ EU VOU PODÊ MOSTRÁ LÁ NA ALDEIA DE PESCADÔ.
(pausa)
E TODOS VÃO ACREDITÁ NI MIM.
(pausa)
E EU ME CASO COM NALDINHA.
(pausa)
DOU UM JEITO NESSA MINHA VIDA.
(pausa)
ME AJUDA?
(coça o rosto, cerra os olhos, passa a mão pelo rosto, angustia-se, deixa o lampião no chão, passa a caminhar em círculos pelo palco, em torno do lampião aceso, caminha e fala)
DIONE....DIONE...DIONE...DIONE...DI-ONE...DI-ONE...DI...ONE...DI ONDE...NALDINHA...NALDINHA...DIONE...DIONE...
(em delírio)
CADÊ A LUZ? ...EU TÔ PERDIDO...CADÊ A LUZ? ...EU NÃO ENXERGO...EU NÃO ME ENXERGO...
(suplicante, em direção à platéia)
DIONE...MINHA NEREIDA...MINHA NINFA...SEREIA..
(pausa)
ESCUTA..
(leva a mão ao ouvido, como se fosse concha do mar, em direção à platéia como se quisesse escutá-la))
ESCUTA OS TEUS AMIGO, OS PEIXE. ESCUTA.
(sussurra)
ELES TE DIZ BEM ASSIM...
(imita)
AJUDA...VITALINO PESCADÔ...
(à parte, explica)
VITALINO SOU EU.
(sussurra)
AJUDA O POBRE... ELE VAI PRA LIDA TODO SANTO DIA, TODO DIA SANTO, ELE É TEMENTE A DEUS...ELE QUÉ MELHORÁ ESSA VIDA! CASÁ COM NALDINHA!
(fecha os olhos, sorri, docemente)
NALDINHA...MINHA LINDA...NOITE DE LUAR...OS LÁBIO QUE OS HÔMI TUDO PEDIU A DEUS...AQUELA PELE...OS CABELO...TÃO LINDO E TÃO PRETO...COMPRIDO...ESPRAIANDO ASSIM...PELAS COSTA, E ELA PENTEANDO AS MADEIXA...COMO SE FOSSE TODO O MAR NUMA SÓ MULHÉ...O MAR...O FUNDO DAS ÁGUA...OS RECIFE DE CORAL, O FUNDO DOS ÓLHO DA MINHA AMADA...AS ÁGUA...FRONDOSA...O BRILHO DA LUA CHEIA...O TEU BEIJO, NALDINHA...E DIZ QUE OS HÔMI TUDO TEM MEDO DE TOPÁ COM SEREIA...E DE OUVI AS SEREIA CANTANDO...QUE ELES TUDO SE ENTREGA PRO AMOR...
(pausa)
(sereno)
POIS EU NÃO TENHO MEDO, NALDINHA. EU NÃO.
(sorri)
EU TOPO COM SEREIA E OUÇO ELA CANTÁ.
(surpreso)
E EU AINDA DOU NOME PRA ELA.
(pausa)
DIONE.
(silêncio)
AGORA TU ME ENTENDE, DIONE?
(sussurra)
MINHA NINFA.
(sério)
PRECISO DE OCÊ. ASSIM... COM TODO O CARINHO.
(pausa)
E OCÊ ACABA ASSIM, NA MINHA REDE.
(pausa)
EU TOMO UM JEITO NESSA VIDA.
(sorri)
E TE SOLTO EM SEGUIDA, TE DÔ A LIBERDADE...PRA TI CORRER PROS MAR. LINDA, QUE NEM OCÊ TÁ AGORA, EM CIMA DAS PEDRA.
(melindroso)
MAS OCÊ TEM É QUE ME AJUDÁ AGORA, MINHA SEREIA! VEJA BEM!
(agacha)
EU VOU TÉ AÍ, TE PEGO.
(gesticula)
E TE PUXO PELAS REDE.
(continua o arrastão imaginário)
E OCÊ FINGE QUE TÁ MORTA, QUE TÁ FERIDA, ASSIM, QUE EU TE SALVEI A VIDA.
(pausa com o puxão, respira)
AÍ...EU SENTO NA BEIRA DA PRAIA...
(senta)
E FICO OLHANDO O SOL NASCÊ...FICÁ A PINO...E OCÊ ASSIM, COMIGO...MINHA SEREIA..
(sussurra)
E AÍ EU CANTO PRA OCÊ...PRA TE ENFEITIÇÁ...
(cantarola, inventa uma melodia)
DO FUNDO DAS TUAS ÁGUA
QUANDO O GRANDE MAR SE AVISTA
NO MUNDO TE GUARDA AS MÁGOA
SEM DEIXÁ DOR NEM PISTA
(pausa)
(sorri, põe-se logo de pé, começa a dançar)
EHÊÊÊ....
(anda marcialmente)
E EU ANDO ASSIM...POR CIMA DAS ÁGUA...QUI NEM NOSSO SENHÔ JESU CRISTO, DIONE...PRA OCÊ VÊ...
(explica, à parte)
EU SOU TEMENTE A DEUS, NÃO TÔ FAZENDO NEGAÇA, NÃO! VEJA BEM...
(põe-se de pé, parado, diante da platéia)
MEU NOME É VITALINO SOUZA, MAIS CONHECIDO NA LIDA COMO VITALINO PESCADÔ...
(sorri)
OU VITALINO DOIDIM...
(explicativo)
VITA...DE VIDA! FOI ASSIM MESMO QUE ME EXPLICÔ UMA TURISTA ITALIANA...VITA...DE VIDA...ENTÃO LINO DEVE SER...DE LINDO! HEHEHE!
(levanta o dedo, em riste)
MAS SÔ HÔME DE BEM, SIM! HÔME DE BEM, QUI NEM MINHA POBRE MÃEZINHA ME CRIOU, QUE DEUS A TENHA, DONA MARIA AMÉLIA...MINHA SANTA...
(olha pro céu)
ELA SABE O QUE É BOM PRA MIM, DIONE.
(olha pro fundo da platéia, para algum ponto que seja “Dione”)
ELA SABE.
(sorri)
NALDINHA.
(fecha os olhos, doce)
AH, NALDINHA. VOU ME CASAR COM OCÊ, MINHA SANTINHA.
(olha matreiro)
BASTA QUE OCÊ ME AJUDE, DIONE.
(pausa)
ENTENDEU?
(sério)
NÃO TEM MUITO MAIS TEMPO NÃO, MINHA SEREIA.
(volta para a ponta da rede, pé-ante-pé, lento, enquanto fala)
ENQUANTO O SOL NÃO SE ACHEGA...EU VOU CONTANDO PRA OCÊ ESSA HISTÓRIA QUE EU FALEI...
(sussurrando)
DO HIPUPIARA...
(sorri)
(olha para trás, sério)
NADA QUE VER COM OCÊ, DIONE. OCÊ É LINDA.
(sorri)
O HIPUPIARA É BICHO FEIO, É COISA DO DEMO. MAS VAI ESCUTANDO.
(volta a caminhar lento para a ponta da rede, enquanto vai contando, VITALINO leva a rede lentamente sobre a platéia, pede ajuda para que as pessoas vão passando a ponta e então a platéia – ou parte dela -, enquanto ele conta a história, vai sendo coberta pela rede)
NESSE MUNDÃO AÍ DE MEU DEUS, FAZ MUITO TEMPO, MAS PÕE TEMPO NISSO...NESSE LITORAL QUE SE PERDE DAS VISTA...ACONTECE QUE EM SÃO VICENTE, QUE ERA PITITICA QUE SÓ, UMA VILA DE PORTUGUÊS, TEMENTE A DEUS E TUDO O MAIS, COM IGREJA, TUDO DIREITINHO...TINHA UM CAPITÃO FORTE, CABRA VALENTE, TODO MUNDO GOSTAVA DELE POR DEMAIS.
(imponente)
CAPITÃO BALTAZAR.
(sorri)
ESSE É O NOME DELE. E OLHA QUE NÃO É O MESMO NOME DE UM DOS TRÊS REIS MAGO, NÃO?
(sorri)
VAI VÊ QUE É UM DELES MESMO...
(pausa)
BOM...
(narrativo)
AÍ...ELE MORAVA NUM CASEBRE SIMPLES, MAS BONITO, LIMPINHO...
(à parte)
É UM CAPITÃO, NÉ?
(sorri)
ESSE CAPITÃO TINHA UMA ESCRAVA, QUE ERA ÍNDIA.
(à parte)
Ô, DIONE...IMAGINO QUE OCÊ TÁ É ME PERGUNTANDO, MAS POR QUE DIABO É QUE EU TÔ AQUI CONTANDO ESSA HISTÓRIA...
(sorri)
QUE É PAMODIDÊ MOSTRÁ QUE O AMOR TUDO PODE, QUE NINGUÉM VENCE O AMOR MESMO.
(explica)
ENQUANTO ISSO EU VOU PUXANDO UNS PEIXIM POR AÍ...VAMO VÊ SE A MARÉ TÁ BOA...BOM...VORTEMO PRA HISTÓRIA...
(à parte)
E OCÊ VAI DIZÊ, MAS O QUE TEM UMA COISA A VER COM OUTRA? A ÍNDIA. MAS ESSA TAL DE INDIA, ELA GOSTAVA DO CAPITÃO?
(explica)
NÃO...
(sorri)
VAI OUVINDO...
(continua espalhando a rede e a contar)
O NOME DESSA ÍNDIA ESCRAVA ERA IRECÊ...
(formoso)
IRECÊ.
(pausa)
ELA AMAVA O ÍNDIO ANDIRÁ. SÓ QUE ANDIRÁ, VALENTE QUE SÓ ELE, ELE MORAVA LÁ NO CONTINENTE, DO OUTRO LADO DAS ÁGUA, ENQUANTO IRECÊ MORAVA NA ILHA, NA CASA DO CAPITÃO.
(suave)
ERA UM AMOR LINDO QUE SÓ.
(narrativo)
E IRECÊ, QUE NÃO ERA NEM BOBA NEM NADA, ELA CUIDAVA DA CASA DO CAPITÃO BALTAZAR DE DIA...E DE NOITE ELA IA ERA SE ENCONTRÁ COM ANDIRÁ. IRECÊ SAÍA DE NOITINHA, COM AQUELE CÉU TODO ESTRELADO DE SÃO VICENTE, ESTRELADINHO COM A VIA LÁCTEA E OS COMETAS QUE DEUS COLOCOU LÁ...E IRECÊ, A INDIAZINHA, SEGUIA MATA ADENTRO...TODA NOITE...E QUANDO ELA CHEGAVA NA BEIRA D’ÁGUA, QUE NEM NÓS TAMO AQUI, ASSIM, NAS PEDRA, ELA CHAMAVA ANDIRÁ COM UM BARULHINHO QUE SÓ ELES CONHECIA...
(imita o barulhinho, faz com a boca)
BEM ASSIM...TODO DIA...E ERA UM AMOR BONITO DE VÊ.
(tom)
NUMA DESSAS NOITE, IRECÊ VAI AO ENCONTRO DE SEU AMADO, QUANDO, NO MEIO DA MATA...
(dá um salto)
PLUFFF!
(misterioso)
UMA ÍNDIA VELHA QUASE MATA IRECÊ DO CORAÇÃO! FOI UM SUSTO! UMA ÍNDIA VELHA, VELHINHA, DE QUASE CEM ANO...E ELA PEGOU IRECÊ PELO BRACINHO DELA E DISSE BEM ASSIM...
(imita a velha)
CUNHÃ, MINHA JOVEM,...ESSAS MATA DE TUPÃ TEM UNS PERIGO QUE NÃO SE PODE NEM FALÁ, NEM VÊ...
(imita Irecê assustada)
IMAGINA A COITADA DA IRECÊ TODA APAVORADA! E A VELHA CONTINUA....
(imita a velha)
SE ATENTE, MINHA CUNHÃ, SE O AMOR JOVEM NÃO PÕE LIMITE, ABRE O OLHO.
(sorri)
E A ÍNDIA SUMIU, ZUP! DO JEITIM QUE VEIO, DO NADA! PUF!! QUE ALÍVIO!
(respira ofegante, aliviado)
(narrativo)
ENTÃO FOI QUE NAQUELA NOITE ELA SE ENCONTROU COM ANDIRÁ..DEU TUDO CERTO...
(suave)
OS CABELO DE IRECÊ...O BRILHO DA LUA NAS MADEIXA...OS OLHIM DE ÍNDIA...A PELE...AS DUAS PELE, HOMEM E MULHÉ, NUMA BELEZA SEM IGUAL, UMA COISA SANTA, UMA COISA DIABA, DE DEUS, DAS ESTRELA, DO MAR...QUANDO O AMOR SE ACHEGA ASSIM...QUIETINHO, NA BRISA DA NOITE, AH...IRECÊ AMAVA ANDIRÁ COM TODA A MANSIDÃO DE UMA CUNHÃ. ASSIM...DOCE...FEROZ...LOUCA...UMA DEUSA DA MATA, UM DEUS DO MAR...
(paralisa)
MAS O AMOR TEM HORA. IRECÊ PRECISA VOLTÁ. UM BEIJO DE ÍNDIO, OS DEDOS NOS CABELOS DE IRECÊ...E ANDIRÁ PEGA A CANOA DE VOLTA...
(narrativo)
E IRECÊ SE DESPEDE DO AMOR. E VOLTA PRAS MATA. ENTRA. ANDA. CAMINHA TUDO O QUE PODE, SE ALEMBRA DO QUE FALÔ A VELHA INDIA...DOS PERIGO DA NOITE...
(anda como se fosse Irecê, olhando amedrontada pros lados, pra cima)
ELA PODIA OUVIR AS FOLHA TUDO SE MEXENDO...MAS PODIA SÊ O VENTO, PENSOU A CUNHÃ...
(agacha devagar)
E ASSIM ELA FOI...FOI E VOLTÔ LÁ PRA CABANA DO CAPITÃO BALTAZAR, PROS AFAZÊ DELA.
(pausa)
NISSO, UM DIA ELA FOI DE NOVO SE ENCONTRÁ COM ANDIRÁ. O PÊLO ARREPIAVA..
(explicativo)
MAS NÃO ERA AQUELE ARREPIÁ GOSTOSO DE AMOR, NÃO...ERA UM ARREPIÁ DIFERENTE, DE GELÁ AS ARMA...DE GELÁ AS ESPINHA...
(narrativo)
E A NOITE SOPRAVA NAS FOLHA TUDO ASSIM...
(imita o sopro da noite)
E IRECÊ FOI ASSIM MESMO, SE METEU NO FUNDO DAS MATA ATÉ O OUTRO LADO DA ILHA, PRA ENCONTRÁ O AMADO. E COMEÇOU TODO AQUELE CHAMADO...
(imita o chamado)
QUE ELE SEMPRE RESPONDIA...E CHAMA DAQUI E CHAMA DALI, CHAMA PRUM LADO, CHAMA PRA OUTRO, E NADA... NAQUELA NOITE ANDIRÁ NÃO RESPONDIA. NEM A CANOA EM QUE ELE VINHA, NÃO VEIO. ERA TUDO DIFERENTE. IRECÊ ESPERÔ MAIS UM TEMPO...
(misterioso)
A COISA TAVA FICANDO FEIA. IRECÊ NÃO VIA ANDIRÁ. ELE NUM VINHA DE JEITO NENHUM. ELA NÃO FICOU PRA ESPERÁ MAIS. E VOLTOU, VOLTOU, VOLTOU POR DENTRO DA MATA FECHADA, MATA ESCURA....IRECÊ ERA PURO MEDO!
(agitado)
DE REPENTE, O BICHO, A COISA, O QUE IRECÊ MENOS QUERIA, ACONTECEU. O MONSTRO FEIO, UM BICHO DO MAR, CHEIO DE ESCAMA, QUE NEM PEIXE...
(paralisa perto do lampião, todo misterioso)
O HIPUPIARA!
(agitado, começa a retirar a rede de cima da platéia, com a ajuda da platéia)
O MONSTRO TODO ESCAMOSO FEITO PEIXE, RABO DE SEREIA, CORPO DE PORCO, CARA DE DIABO, ELE SE ARRASTAVA FEIOSO QUE NEM O CRAMULHÃO, IRECÊ CORRIA NA FRENTE. O BICHO SE CHEGAVA PERTO, A INDIAZINHA CORRIA FEITO O QUÊ! A COISA SE ARRASTAVA, NA AREIA, NO MEIO DA RELVA! EIS QUE A POBRE SE CHEGA AO CASEBRE DO CAPITÃO, BATE COM TODA A FORÇA NA PORTA, ACORDANDO DESESPERADA O CAPITÃO, ASSIM, BEM NO MEIO DA NOITE!
(imitando o capitão)
O QUÊ? ME ACORDOU PRA QUÊ?
(narra como se lutasse, movimentando-se muito)
E O CAPITÃO NÃO TEVE DÚVIDA! IRECÊ FICOU NO CASEBRE, O BICHO FEIO TAVA LÁ FORA, O CAPITÃO PEGOU DA ESPADA – ZUP! – A ESPADA E A FACA CONTRA O BICHO DOS DEMÔNIO! LÁ FORA A GUERRA DE HOMEM E BESTA, A FERA E O CAPITÃO VALENTE! E ZUP DE CÁ, ZUP DE LÁ, E A BESTA FERA DAVA RABADA PRA LÁ, PRA CÁ, UM HORROR, ACORDOU TODA A VILA DE SÃO VICENTE! A NOITE VIROU UM INFERNO! O INFERNO VIROU DIA! E SEM TÁ CANSADO DE TANTO LUTAR, O BICHO NÃO DAVA TRÉGUA, O CAPITÃO CRAVOU A ESPADA NO MEIO DO PEITO DO ANIMAL, E PUXOU PRA BAIXO A ESPADA, RASGANDO TODO AQUELE BICHO, AQUELA COISA QUE URRAVA E CAIU NO CHÃO, ESTATELADO! BUM!
(pausa, recolhe a rede)
A FERA FOI TODA CORTADA. O HIPUPIARA VIROU UM MONTE DE COISA FEDORENTA, PENDURADA PELAS ESPADA DOS HÔME DA VILA TODA. SÃO VICENTE. ERA O FIM DAQUELE BICHO, ERA O FIM DAQUELE DEMÔNIO.
(agacha)
E IRECÊ FOI-SE EMBORA DALI, FOI MORAR LONGE, PROS SERTÃO ADENTRO, SUBIU A SERRA. DE ANDIRÁ NUNCA MAIS SE OUVIU FALÁ. E A VELHA INDIA JÁ TINHA FALADO SUAS HISTÓRIA PRA CUNHÃ.
(misterioso)
ERA O FIM DE UM AMOR...E O INÍCIO DE UMA LENDA..
(silêncio)
( Sorri, começa a colocar a rede num canto do palco)
POR ISSO, DIONE...É QUE EU PRECISO QUE OCÊ ME AJUDE. MAS NUM PENSE QUE EU SOU O CAPITÃO NEM QUE OCÊ É O BICHO FEIO, NÃO.
(pausa)
AQUI A COISA É OUTRA...CONFIA EM MIM.
(sorri)
OCÊ VIU QUANTOS PEIXINHO EU PEGUEI COM A REDE? (brinca com alguém da platéia, com a cor da roupa) JÁ SOLTEI ELES TUDO POR ESSE MAR DE DEUS...
(pausa)
HOJE A MINHA COISA É COM OCÊ, DIONE.
(anda)
SE OCÊ PENSÁ BEM...LÁ COM OS SEUS BOTÃOZINHO...SE É QUE OCÊ TEM BOTÃO, DEVE TÊ É ESCAMA, NÉ? (ri)...QUE SEJA...
(grandiloqüente)
EU JÁ CONTEI AQUI UMA HISTÓRIA, UMA LENDA...SE É BONITA, NÃO SEI... MAS O QUE TENHO CÁ PRA MIM É QUE OCÊ É UMA SEREIA, UMA NINFA...
(gesticula)
NEREIDA...
(sério)
COMO DIZ O TURISTA...
(anda)
DESSE JEITO QUE OCÊ É...TEM UMAS HISTÓRIA MUITO DAS MACABRA SOBRE SEREIA, QUE OCÊ DEVE SABÊ...E QUE PÕE MEDO EM PESCADÔ...E NAS MULHÉ DOS PESCADÔ TAMBÉM...
(vai até o lampião, anda em torno, agacha diante dele, a luz do lampião nele)
COISA QUE NEM É BOM DE LEMBRÁ. SE OCÊ LEMBRÁ, VAI PENSÁ AÍ SOZINHA QUE EU TENHO LÁ MINHAS RAZÃO... NÃO SEI SE NALDINHA IA GOSTÁ DE EU TAR ASSIM, ME PERDENDO DE PAIXÃO POR UMA SEREIA, NALDINHA IA PENSÁ, FALANDO SOZINHO COM ELA ASSIM, NO MEIO DO NOITÃO.
(explica)
MESMO PORQUE EU NÃO TÔ CAÍDO DE PAIXÃO POR OCÊ, NÃO, DIONE.
(sério)
NUNCA QUE MESMO.
(silêncio)
A MULHÉ DE MINHA VIDA É NALDINHA. JÁ DISSE.
(sério)
E EU POSSO AQUI CONTÁ UMAS COISA DE SEREIA QUE É DE METÊ MEDO, DE FAZÊ OCÊ CAIR NA MINHA REDE E DIZÊ, ASSIM, PRA EU PERDOÁ OCÊ POR ESSAS COISA TUDO. É...MAS AÍ OCÊ VAI FALÁ QUE NÃO TEM NADA COM ESSAS COISA, ESSAS HISTÓRIA DE ARGONAUTA, DE JASÃO, DE OS MARINHEIRO TUDO COLOCÁ ALGODÃO NOS OVIDO PAMODI NÃO ESCUTÁ TEUS CANTO.
(levanta)
POR ISSO NEM CANTE, DIONE! NEM CANTE!
(sério)
NEM VEM...
(caminha)
EU POSSO NÃO SÊ O TAL DO JASÃO DAS LENDA GREGA. MEU PAI, QUE SE SUMIU POR ESSES MUNDO DE DEUS, ASSIM, DE BARCO...QUE NUNCA MAIS FOI VISTO...ELE CONTAVA UMAS HISTÓRIA PRA MIM, QUANDO EU ERA PEQUENO.
EU POSSO NÃO SÊ O TAL DO JASÃO DAS LENDA GREGA. MEU PAI, QUE SE SUMIU POR ESSES MUNDO DE DEUS, ASSIM, DE BARCO...QUE NUNCA MAIS FOI VISTO...ELE CONTAVA UMAS HISTÓRIA PRA MIM, QUANDO EU ERA PEQUENO.
(imita o pai)
“O JASÃO TINHA UMA MISSÃO PRA CUMPRÍ...ELE TINHA QUE IR NUM LOCAL LONGE QUE SÓ PRA PEGAR UMA LÃ DE CARNEIRO...UMA LÃ DE OURO...ISSO PORQUE O TIO DELE PEGOU O TRONO QUE SERIA DELE”.
(à parte)
MEU PAI, COITADO DELE, ELE SABIA DESSAS HISTÓRIA BONITA DOS LUGAR BEM LONGE DAQUI...DE MUITO TEMPO ATRÁS...
(sorri)
MINHA MÃE, COITADA, QUE DEUS A TENHA, ELA VIVIA FALANDO COM MEU PAI ASSIM:
(imita a mãe)
“PÁRA DE CONTÁ ESSAS COISA PRO MENINO, ARICLENES..”
(explica)
ARICLENES É O NOME DO MEU PAI, O QUE SUMIU POR ESSE MUNDO DE DEUS.
(imita a mãe, novamente)
“PÁRA DE ENCHÊ AS CACHOLA DO MININO ASSIM, COM ESSAS HISTÓRIA DE GENTE SONHADÔ, QUE NEM OCÊ!”
(explica, sorrindo)
MEU PAI SONHAVA...QUE NEM EU...MAS ELE DIZIA...
(imita o pai)
“AÍ JASÃO CONSTRUIU UM BARCO CHAMADO ARGOS. E CONTRATÔ LÁ UNS HÔMI PRA IR JUNTO DELE ATRÁS DA TAL DA LÃ DE CARNEIRO DE OURO...ERAM UNS CINQUENTA...”
(ri, à parte)
CINQUENTA...NEM A VILA AQUI TEM ISSO TUDO DE PESCADÔ, HEHE.
(imita o pai)
“ENTRE OS HÔMI QUE JASÃO CONTRATOU, TAVA LÁ UM TAL DE ORFEU, QUE CANTAVA E TOCAVA MÚSICA PRA TRIPULAÇÃO.”
(ainda imitando o pai, já fazendo mais evoluções, vai até o arpão)
“E NÃO É QUE ELES INVENTARO MUITOS PERIGO NA VIAGEM?”
(imita a mãe)
“NÃO PÕE MINHOCA NA CABEÇA DO MININO, HÔMI!”
(imita o pai)
“A TUA MÃE TÁ É FICANDO VELHA, HEHE....”
(pega o arpão, começa a fazer evoluções com ele)
AS PEDRA! IMAGINA UM BANDO DE PEDRA, NO MEIO DO MAR, QUE SE FECHA QUANDO O BARCO PASSA POR ELAS! JASÃO SOLTOU UMA POMBA QUE PASSOU NO MEIO DAS PEDRA! A POMBINHA PASSOU FINIM, FINIM, AS PEDRA RECUOU TUDO, E O BARCO PÔDE PASSÁ RAPIDIM, ASSIM, À TODA VELA! ZUP!
(imita a mãe)
“NÃO CONTA COISA ERRADA PRO MININO!”
(imita a si próprio, criança)
AH, MÃE! DEIXA O PAI!
(imita a mãe)
MININO! VAI FAZÊ COISA MAIS ÚTIL QUE OUVÍ TEU PAI!
(imita o pai)
DEIXA O MULEQUE, MULHÉ!
(imita a si próprio, menino)
CONTINUA, PAI! E ENTÃO?
(imita o pai)
ENTÃO...NA VIAGEM DE VOLTA, OS ARGUNAUTA TUDO SE DEPARARO NO MEIO DAS ÁGUA COM ELAS...
(misterioso)
AS SEREIA! METADE MULHÉ, METADE PEIXE! É SÓ ELAS CANTÁ QUE OS MARINHEIRO TUDO CAI PRA MORTE, MERGULHAM NA ÁGUA PRA NUNCA MAIS VOLTÁ!
(imita a si mesmo)
CRUZ, CREDO, PAI! E O QUE ELES FIZÉRO?
(imita o pai)
NÃO É QUE NO MEIO DOS MARINHEIRO TAVA LÁ O TAL DE ORFEU?
(imita a si próprio)
O CANTADOR?
(imita o pai)
O PRÓPRIO! E FOI O DITO COMEÇÁ A TOCÁ E CANTÁ E POETÁ, QUE AS SEREIA TUDO COMEÇOU A FICAR MANSINHA, MANSINHA, PARANDO A CANTORIA DELAS JÁ QUE ELE ERA UM POETA DOS BOM, AS SEREIA DEIXOU ELES TUDO PASSÁ. MAS NÃO SEM ANTES ELES TAMPÁ OS ÔVIDO COM LÃ!
(imita a si próprio)
LÃ?
(imita o pai)
DO CARNEIRO DE OURO! ELES JÁ TINHAM PEGO A LÃ DO DITO CUJO!
(imita a si próprio)
AH...
(imita o pai, misterioso)
É POR ISSO QUE EU TE DIGO, MENINO...SE TU QUÉ CASÁ COM NALDINHA...TEM QUE PASSÁ PELAS SEREIA DA VIDA!
(silêncio, ainda com o arpão)
(volta à conversa)
TÁ VENDO, DIONE? ATÉ O MEU PAI FALOU O QUE ELE FALOU...ATÉ ELE, QUE NEM TÁ MAIS AQUI, VAI VÊ ENCONTROU UMA SEREIA SÓ PRA ELE...ASSIM, LINDA, QUE NEM OCÊ...
(aponta o arpão)
AH, DIONE...VEM...EU NÃO VOU TE MACHUCÁ DE JEITO MANÊRA. EU VOU SÊ É MUITO DO DELICADO CONCÊ...VOU TE ACARICIÁ, VOU TE EMBALÁ COM UMAS CANTIGA, DIZÊ UMAS PROSA...MAS NÃO VOU QUE NÃO VOU CAÍ NAS TUAS ÁGUA, AH, ISSO É QUE NÃO...
(respira, larga o arpão, começa a rodopiar)
TEM NALDINHA...TEM MINHA MÃE...COITADINHA...TEM MEU PAI QUE NEM DEUS SABE PRAONDE É QUE SE METEU NESSE MUNDO DE DEUS...TEM DIONE...TEM A ALDEIA DOS PESCADÔ, MESTRE LUIZ...TEM DE TUDO...TEM OS PEIXINHO... .TEM DIONE...TEM A ALDEIA DOS PESCADÔ, MESTRE LUIZ...TEM DE TUDO... .TEM DIONE...TEM A ALDEIA DOS PESCADÔ, MESTRE LUIZ...TEM DE TUDO...TEM OS PEIXINHO TEM OS PEIXINHO TEM OCÊ, DIONE....TEM OCÊ...TEM OCÊ....TEM OCÊ.... TEM OCÊÊÊÊÊÊ!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! EEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEHHHHEEEEEEEEEEEEEEEEEIIIIIIIIIII......
(desaba no chão, estatelado, rijo, ri muito, ri até se escangalhar de tanto rir, até começar a chorar muito)
(do chão)
EU NÃO VOU ME DEIXÁ OUVÍ PELAS TUAS CANTORIA, DIONE! TÁ ME OUVINDO? TÁ ME OUVINDO? TÁ?
(vagarosamente, enquanto fala, vai se ajoelhando, vai ficando exasperado)
EU SOU VITALINO, VITA DE VIDA, LINO DE LINDO...EU SOU PESCADÔ DAQUI DESSE LITORAL, DESSE MAR AZUL ABERTO DE DEUS, DESSA VILA, DO MESTRE LUIZ, PAI DE NALDINHA! SOU O VITALINO DOIDIM, SOU AQUELE QUE VIU COISA NO MAR...SOU TEMENTE A DEUS NOSSO SENHÔ! SOU TEMENTE, TÁ OUVINDO? TEMENTE!!!!!!!!!
(ajoelhado, cerra os olhos com força, mãos postas, começa a rezar)
AVE MARIA
CHEIA DE GRAÇA
O SENHÔ É CONVOSCO
BENDITO SOIS VÓS
ENTRE AS MUIÉ
E BENDITO O FRUTO
DO VOSSO VENTRE
JESUIS
SANTA MARIA
MÃE DE DEUS...
ROGAI...
(começa a berrar dali mesmo)
PÁRA COM ISSO DIONE!
(continua fervoroso, com força)
ROGAI POR NÓIS
PESCADÔ
AGORA E NA HORA DA...
(começa a berrar)
AGORA....E ...NA...HORA...DA...NOSSA...MORTE....
(berra, leva as mãos aos ouvidos, tampando)
PÁRA COM ISSO!!!!!!!!! PÁRA!!!!!!!!!!!!! PÁRA!!!!!!!!!!!!!!PÁRA PELAMORDEDEUS PÁRA!!!!!!!!!!!!!!!
(joga-se ao chão, gira com o corpo, debate-se, mãos aos ouvidos sempre)
PARE COM ISSO, DIONE, SEREIA DOS INFERNO! PARA COM ISSO! PARA, PELO AMOR DA SANTÍSSIMA, DA MINHA MÃE COITADINHA QUE DEUS A TENHA, DO MEU PAI QUE SE FOI POR ESSE MAR QUE ALGUMA SEREIA LEVOU ELE...
(levanta-se enlouquecido, pega o arpão, berra)
PÁAAAAARAAA!!!
(tempo. Respira ofegante)
FIZEMO UM TRATO...EU E TU...MAS TU QUÉ É ME INFEITIÇÁ, BICHO DO DEMO...MULHÉ...MULHÉ PEIXE, PEIXE MULHÉ...ME INFEITIÇA QUI NEM NALDINHA ME FAZ...COM AQUELES CABELO DE ÍNDIA...DE IRECÊ...CABELO QUE CAI PELOS OMBRO FEITO RIO, CASCATA, CACHOEIRA...CACHOEIRA DE BRILHO NA NOITE...CABELO DE MULHÉ QUE PARECE A VIDA TODA!
(misterioso)
EU SÓ NUM TENHO AQUI COMIGO A LÃ DO TAL CARNEIRO...A LÃ DE OURO...
(aponta o arpão, desafia)
VAI...CANTA, DESGRAÇA...CANTA, DEMÔNIO...CANTA, MULHÉ PEIXE...CANTA...CANTA! VAI, CANTA! CANTA, DIONE!!!!!!!!!!! CANTA DIONEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!!!!!!!!!
(joga o arpão no chão, com força)
CANTA!
(fecha os olhos. Tempo, reza lentamente)
AVE MARIA...
CHEIA...CHEIA DE GRAÇA....
(leva as mãos aos ouvidos, tampando)
O SENHÔ É CONVOSCO....
BENDITO SOIS VÓS ENTRE AS MULHÉ...
(gira, rodopia)
BENDITO É O FRUTO...
(gira)
BENDITO É O FRUTO....
(gira)
BENDITO É O FRUTO....
MEU PAI QUE SE FOI NAS ÁGUA DA PERDIÇÃO QUE UMA SEREIA LEVOU....
(começa a andar com dificuldade em direção à rede)
BENDITO É O FRUTO....
DO VOSSO VENTRE...
MINHA MÃEZINHA QUE DEUS A TENHA QUE NÃO QUERIA QUE EU OUVIA AS HISTÓRIA DE MEU PAI...
(cai, ajoelha-se, arrasta-se em direção à rede)
DO VOSSO VENTRE...
JESUIS....
IRECÊ INDIAZINHA QUE SE FOI PELO AMOR QUE NUNCA MAIS OUVIU FALÁ!
(alcança a rede, ajoelha-se lentamente, levanta o que pode de rede, fazendo sua imagem ficar atrás da rede)
SANTA MARIA MÃE DE DEUS...
MÃE DE DEUS...
DE ORFEU QUE CANTOU AS CANTORIA PRAS SEREIA DEIXÁ ELES TUDO PASSÁ...
(levanta aos poucos, assim levantando a rede até onde pode, no ar, o resto da rede no chão, ele atrás da rede)
ROGAI POR NÓIS, PESCADÔ....
ROGAI POR NÓS, PESCADÔ...
ROGAI POR NÓS PESCADÔ!!!!!!!!!!!!
AGORA...
NALDINHA MULHÉ QUE EU AMO PERDIÇÃO DOS MEUS DIA VIDA QUE ME ENREDA DE PAIXÃO E GOSTO! NALDINHA QUE É MINHA LUZ NA VIDA, MINHA SEREIA, MEU MAR, MINHA LUA, NALDINHA QUE É A MULHÉ QUE EU AMO! EU AMO! EU – AMO! NAL...
(fecha os olhos, como em desespero)
AGORA...E NA HORA DE NOSSA MORTE...
NA HORA DE NOSSA MORTE...
(tempo. Olhos cerrados, ele joga a rede sobre si, a imagem é de um homem enredado, ele berra sem som)
(desaba no chão. Blecaute)
FIM
