LOURENÇO (Prêmio Estímulo de Dramaturgia 2008/2009) - inédita

Teatro Brasileiro
T 
LOURENÇO
drama em dois atos de Ruy Jobim Neto



Governo do Estado de São Paulo

Secretaria de Estado da Cultura

Prêmio Estímulo de Novos Textos de Dramaturgia para Teatro – 2008

(Registrada na Biblioteca Nacional sob № 461.918 em 23/06/2009)
solicitações pelo e-mail jobimneto.ruy@gmail.com 

São Paulo, abril de 2009.

SINOPSE

Na madrugada de 18 para 19 de novembro de 1724, irá morrer o padre luso-brasileiro Bartolomeu de Gusmão, o inventor do balão, num leito do Hospital de la Misericordia, em Toledo, Espanha.  Acometido de febre tifóide, ele se dá ao direito a um último delírio - pensado, planejado, com um objetivo: o de recolocar Portugal na vanguarda da Europa, como um dia foi, nos tempos áureos de Camões e Vasco da Gama. Antes que a Inquisição impeça.

.................

“...as naus são construídas
daquilo que os sonhos são feitos.”
(Fernando Pessoa)

“Et ego in illo!”
(Bartolomeu de Gusmão)



Madrugada de 18 para 19 de novembro de 1724,
Um leito do Hospital de La Misericórdia,
Toledo, Espanha.


Dramatis Personae

BARTOLOMEU /  Padre Bartolomeu de Gusmão
Luso-brasileiro, nasceu na colônia portuguesa na América. Tem 38 anos. Clérigo regular e visionário. O inventor do balão. Foi internado no Hospital de La Misericórdia.

IRMÃ ROSÁRIO / Irmã Rosário de La Cruz
Espanhola. Uma bela jovem de seus 22 anos. É o único personagem fictício da peça. Atende na função de Irmã de Caridade no Hospital de La Misericórdia. Uma religiosa.

MARQUÊS / Joaquim Francisco, Marquês de Abrantes
Português. Tem 29 anos. De família nobre. Ex-aluno de Bartolomeu de Gusmão. O visitante

ATO I  (ante-quadro)

Os sinos de uma catedral dobram ao longe, são muitos sinos de grande dimensão, todos ao mesmo tempo. Os sinos se misturam ao trinado de um rouxinol. IRMÃ ROSÁRIO está de pé, vestida de hábito, porém sem o véu e a pala, descobrindo sua cabeça.

Em sua mão, um candeeiro com vela acesa. IRMÃ ROSÁRIO chora, enquanto fala. Ela tira do bolso do hábito um papel escrito. Afasta os dois, esticando os braços, em posição de cruz. Instantes.

IRMÃ ROSÁRIO
(sussurra)
Que muero porque no muero....
Que muero porque no muero...
Que muero porque no muero...
Que muero porque no muero...

IRMÃ ROSÁRIO aproxima a folha da fonte de calor, quando percebe que vai pegar fogo. Então tira a folha nesse instante e sopra o chamuscar da folha.

Nesse exato instante, uma luz muito forte se abre de uma das coxias, um clarão, onde se vê a sombra e a silhueta de um rapaz. Cessam os sinos e o trinado de rouxinol. IRMÃ ROSÁRIO pára de sussurrar imediatamente.

Som de vento. Ela olha para o clarão, e apaga a vela num sopro. O rapaz anda fantasmagoricamente. Ele se aproxima dela.

Ao chegar perto dela, um halo suave acende sobre os dois, fazendo sumir o clarão. IRMÃ ROSÁRIO pausa seu verso, olha fixo para ele, sem medo, como se fosse algo normal. Trata-se do mesmo personagem MARQUÊS que aparecerá mais adiante.

Ela fica em pé diante dele, ambos se olham. IRMÃ ROSÁRIO leva uma de suas mãos, suavemente, para diante do rosto do MARQUÊS, sem tocá-lo, desenha um gesto doce diante dele.

IRMÃ ROSÁRIO paralisa o “desenho”. Retira a mão diante do rosto do MARQUÊS. Instantes, apaga essa fonte de luz. Cessam os ventos.

Imediatamente, acende foco de luz noutro ponto do palco, boca de cena. BARTOLOMEU olha a platéia, tece um raciocínio


BARTOLOMEU
Existem duas mortes. Uma é aquela que todos nós conhecemos. Plena, verdadeira. Aquela pela qual os vermes anseiam, pela qual as carpideiras choram. E acendem velas. Nesta morte, o corpo está devidamente plácido, gélido, esperando ser consumido. É científica, lógica.

(com uma vela acesa no candeeiro, IRMÃ ROSÁRIO entra no leito do hospital que vai se iluminando à medida que ela anda lentamente. Ela vê que BARTOLOMEU não se encontra. Seus olhos se angustiam)

BARTOLOMEU
Existe outra, por sua vez, ao contrário desta primeira, também morte, em que a verdade se esconde. Em que se passa um borrador em documentos e evidências são apagadas, se desvanecem. A Lógica e a Ciência fogem a ela. O corpo simplesmente não está lá. E sequer as velas foram acesas. É um tipo de morte em que não há carpideiras. Porém há mentiras... e vermes.

(IRMÃ ROSÁRIO se senta numa cadeira, seu rosto está iluminado pela vela, ela respira ofegante, aflita, porém baixinho)

BARTOLOMEU
(começa a cruzar a cena) Da mesma forma que há duas mortes, há também duas Histórias. Uma é aquela que está nos livros. É a História, filha de Heródoto, a que se utiliza de documentos e que transcende a posteridade. A outra? (ri, irônico) A outra é aquela que construíram, independente dos povos da Terra.

IRMÃ ROSÁRIO
(para si) Don Miguel.

BARTOLOMEU
(olha para o lado em que se encontra IRMÃ ROSÁRIO, torna a olhar a platéia) Chamam por mim. Não. Meu nome não é Miguel, e sim Bartolomeu. Já me encontro, portanto, sob um nome falso. Foi necessário. Para se chegar até aqui, nestes meus últimos dias, num leito, como este, do Hospital de La Misericórdia, em Toledo, Espanha, era preciso que eu e meu irmão João estivéssemos incógnitos, sob nomes falsos, e saíssemos às escondidas, através das fronteiras de Portugal. Passamos de vilarejo em vilarejo, muitas noites sem comer ou dormir, neste princípio de outono espanhol.

(IRMÃ ROSÁRIO não suporta e torna a caminhar pelo leito, deixa a vela numa mesa, arruma a cama, os lençóis, o travesseiro. Pára. Ela está visivelmente aflita, não consegue se concentrar)

BARTOLOMEU
Meus delírios se intensificaram. Ora eu ficava atônito, imóvel, inerte, jogado num canto. Ora desandava a falar blasfêmia sobre blasfêmia, até que um viajante, que seguiu conosco algumas léguas, achasse mesmo que eu tivera enlouquecido. E já nos encontrávamos nesta curva do Tejo, por onde se levantam as muralhas de Toledo.

(de costas para a platéia, IRMÃ ROSÁRIO  solta um gemido)

BARTOLOMEU
(ouve, pausa) Enquanto meu irmão caminha lá fora, talvez na capela do Hospital, talvez em alguma ruela toledana, pensando o que mais adiante irá dizer para a Inquisição sobre nossa fuga, eu ando por esses corredores. E uma idéia me vem à mente, nestas poucas horas que me restam de vida. De todos os delírios que tive até agora, entre blasfêmias e inércias, vou me permitir a mais um. O último deles.

(IRMÃ ROSÁRIO  pára o que estava fazendo, respira fundo. Pega novamente o candeeiro, olha para a vela fixamente, como numa imagem de Georges de La Tour)

BARTOLOMEU
Mas desta vez se trata de um delírio pensado, planejado, com um objetivo em mente. Um delírio que nos permita medir a proporção de uma existência entre uma e outra morte. Entre uma e outra História.

(no sorriso de BARTOLOMEU,  blecaute ao mesmo tempo em que IRMÃ ROSÁRIO sopra a vela)

Quadro 1

(ainda no escuro, diálogo, som de vento)

IRMÃ ROSÁRIO
(ofegante, pensando rápido) Cometa!

BARTOLOMEU
Cometa?

IRMÃ ROSÁRIO
Um clarão nos céus! O fim do mundo!

BARTOLOMEU
Por ordem de quem?

IRMÃ ROSÁRIO
Não consigo ver!

BARTOLOMEU
E o que dizem as sombras?

IRMÃ ROSÁRIO
Sombras?

(foco sobre os dois, BARTOLOMEU cobre com uma das mãos os olhos de IRMÃ ROSÁRIO)

BARTOLOMEU
Do clarão provocado. O desenho das pessoas no chão.

IRMÃ ROSÁRIO
Tenho medo.

BARTOLOMEU
Do clarão?

IRMÃ ROSÁRIO
Das sombras.

BARTOLOMEU
Por que?

IRMÃ ROSÁRIO
Não se pode confiar nelas.

BARTOLOMEU
Por isso Deus?

IRMÃ ROSÁRIO
Deus não é sombra.

BARTOLOMEU
E em nome Dele?

IRMÃ ROSÁRIO
Em nome Dele?

BARTOLOMEU
As catedrais.

IRMÃ ROSÁRIO
Como assim?

BARTOLOMEU
Elas fazem sombra.

IRMÃ ROSÁRIO
Catedrais?

BARTOLOMEU
E as suas sombras, o que dizem?

IRMÃ ROSÁRIO
Minhas sombras.
BARTOLOMEU
Tem medo delas?

(silêncio)

BARTOLOMEU
Desde quando?

(cessa o som de vento)

BARTOLOMEU
(olha para fora) As janelas estão abertas. A noite é calma. Não chove.

IRMÃ ROSÁRIO
Tem rouxinóis aqui em Toledo? Eu nunca ouvi nenhum deles cantar.

(pausa. BARTOLOMEU tira lentamente a mão da frente dos olhos de IRMÃ ROSÁRIO. Pausa. Ela abre os olhos)

IRMÃ ROSÁRIO
Nenhum homem jamais me tocou assim tão perto.

(termina o foco,, abre geral)

IRMÃ ROSÁRIO
(afasta-se. pausa) O senhor poderia ter se perdido na escuridão dos corredores.

BARTOLOMEU
Não há nada que não se possa ver no escuro, Irmã. Não nesta noite.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu tenho minha responsabilidade para com o senhor, Don Miguel. Isso de ficar andando pelo Hospital, assim, de madrugada, não convém.

BARTOLOMEU
A morte não convém, Irmã Rosário. O desaparecimento em si não convém. Todo o resto é permitido.

IRMÃ ROSÁRIO
(dirige-se até à cama, começa a arrumar cobertas) Não estamos num mundo de permissões, Don Miguel.

BARTOLOMEU
(saboreia) Don Miguel, Don Miguel... Don Miguel, Don-Mi-guel... É assim que estou registrado aqui neste Hospital.

IRMÃ ROSÁRIO
É o seu nome. Foi assim que o seu irmão...

BARTOLOMEU
(interrompe, enfático) O meu irmão, com muito esforço e com a graça divina, me instalou aqui, nesta Santa Casa!

IRMÃ ROSÁRIO
Sim.

BARTOLOMEU
Em todo caso, ele tinha motivos. Imagino que tenha sido bem complicado me trazer até aqui, em Toledo. Eu me encontrava delirante.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu sei. Eu mesma vi. O senhor não dizia coisa com coisa.

BARTOLOMEU
Eu cheguei a te assustar, Irmã Rosário?

IRMÃ ROSÁRIO
De forma alguma, Don Miguel. Eu já vi de tudo por aqui. De gente leprosa a gente inválida. Até pessoas que foram mortas por espadas que elas mesmas fizeram, aqui em Toledo.

BARTOLOMEU
Interessante.

IRMÃ ROSÁRIO
O quê?

BARTOLOMEU
Essas pessoas. Ao menos elas deixaram sua marca para a posteridade.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu não gostaria que se lembrassem de mim por ter sido morta por uma espada que eu mesma fiz.

BARTOLOMEU
Não a morte, Irmã Rosário, mas a espada. Não o reles e simples fato, mas o que sobrou dele. A coisa que ainda permanece viva, latente. A espada é mais importante do que a morte.

IRMÃ ROSÁRIO
 (termina de arrumar a cama) Pronto! (dá dois tapinhas na cama arrumada) Cama posta. (para BARTOLOMEU) O senhor não tem sono, Don Miguel? Eu não entendo como o senhor fica pensando esse tipo de coisa no meio da noite.

BARTOLOMEU
O que você faria para ser lembrada?

IRMÃ ROSÁRIO
Eu? Lembrada?

BARTOLOMEU
Se te dessem a oportunidade.

IRMÃ ROSÁRIO
Nunca parei para pensar nisso.

BARTOLOMEU
Camões, por exemplo. Ele teve a chance de salvar sua companheira chinesa Dinamene do naufrágio da caravela. Eles viajavam rumo a Portugal. A caravela foi a pique. Dinamene morreu nas águas, afogada. Mas Camões, ao invés de salvá-la, preferiu nadar heroicamente para salvar a sua obra máxima, “Os Lusíadas”. E se agarrou ao manuscrito da obra, para finalmente levá-lo até a praia, nadando.

IRMÃ ROSÁRIO
 (faz o sinal da cruz) Nossa, que coisa horrível!

BARTOLOMEU
É o preço da posteridade, Irmã Rosário! Camões sabia o que tinha em mãos. E não era a sua companheira chinesa. Ele preferiu aquilo que era verdadeiro ao que era falso.

IRMÃ ROSÁRIO
Ela era falsa?

BARTOLOMEU
Não. Mas ele escolheu a posteridade, e não a vida.

IRMÃ ROSÁRIO
A vida não é falsa, Don Miguel.

(novo clarão. Aparece diante dos olhos de IRMÃ ROSÁRIO a mesma figura do rapaz, que será mais adiante o MARQUÊS. Somente ela vê e fica paralisada. Som dos ventos)

BARTOLOMEU
 (concentrado em seu raciocínio) A vida é feita pelos homens, Irmã Rosário. E os homens mudam as coisas de acordo com seus próprios interesses. Veja o seu nome, por exemplo.

(some o clarão e desaparece no escuro a figura do jovem, bem como o som dos ventos)

IRMÃ ROSÁRIO
 (volta à conversa) O meu nome? O que tem ele?

BARTOLOMEU
 (para IRMÃ ROSÁRIO) É realmente Rosário de La Cruz? Eu digo isso porque vocês, freiras, costumam trocar seus nomes próprios por nomes de santas, quando entram no Convento.

IRMÃ ROSÁRIO
O meu nome não é falso. Ele tem origem celestial. Rosário vem de eu saber rezar o Santo Rosário desde pequena. A própria Virgem Maria desceu dos Céus para ensinar a rezá-lo.

BARTOLOMEU
Sim, claro. E La Cruz?

IRMÃ ROSÁRIO
 (com a mão direita aberta, com o polegar, ela faz três pequenas cruzes, a primeira na testa) Pelo Sinal da Santa Cruz, (a segunda nos lábios) livrai-nos, Deus, Nosso Senhor, (a terceira no coração) dos nossos inimigos.

BARTOLOMEU
Evidente.

IRMÃ ROSÁRIO
 (ainda com a mão direita aberta, ela faz uma grande cruz com o dedo polegar. Olha para BARTOLOMEU) O senhor deveria dormir, Don Miguel.

BARTOLOMEU
Não esta noite, Irmã Rosário. Segundo consta, nós receberemos uma visita nesta madrugada.

IRMÃ ROSÁRIO
(ri) Segundo consta, o senhor está começando a delirar novamente. E daqui a pouco vai querer que eu participe também de suas alucinações. É impossível algum estranho entrar nas dependências do Hospital a essa hora da noite.


BARTOLOMEU
(brincando) Você não costuma exercitar sua imaginação? Qual é o seu dom mais secreto, Irmã Rosário? Você deve ter um.

IRMÃ ROSÁRIO
Um dom?

BARTOLOMEU
Você canta? Compõe? Toca música? Escreve? Aprecia novelas de cavalaria? Amadis de Gaula? Don Quixote?

IRMÃ ROSÁRIO
Nada demais. Apenas escrevo, anoto coisas. Nós, irmãs, aprendemos a ler e a escrever no Convento. É prático, sempre tem alguma utilidade.

BARTOLOMEU
Tenho cá pra mim que por trás dessa sua aparente rigidez, existe uma explosão de criatividade, Irmã Rosário.

IRMÃ ROSÁRIO
 (ri) Don Miguel, acredite, poucos pacientes aqui deste Hospital são tão criativos quanto o senhor. (ri) Imagine. Uma visita.

BARTOLOMEU
Nesta noite!

IRMÃ ROSÁRIO
 (ri) Don Miguel.

BARTOLOMEU
Una noche toledana! (rodopia com IRMÃ ROSÁRIO) Em que os demônios pessoais estão à solta! Os assassinos se escondem nos becos, polindo suas adagas! O sangue espanhol escorrendo pelas escadarias desta cidade milenar e repleta de histórias! (pára de rodopiar) Digamos...

IRMÃ ROSÁRIO
Digamos que o senhor fosse dormir.

BARTOLOMEU
Morrer! Dormir! Não mais! Digamos que eu me chamasse Bartolomeu, e não Miguel, como a Irmã afirma. Se eu tivesse uma outra identidade, algo atrás do que eu pudesse me esconder...Eu poderia ser considerado uma farsa?

IRMÃ ROSÁRIO
Por que... “Bartolomeu”?

BARTOLOMEU
O que é uma farsa, afinal?

IRMÃ ROSÁRIO
Uma comédia?

BARTOLOMEU
Uma comédia grotesca, de rua? De saltimbancos? De gente que perambula de burgo em burgo Europa adentro, e faz suas apresentações em troca de comida?

IRMÃ ROSÁRIO
Um teatro!


BARTOLOMEU
Até que pontos a fantasia que essas pessoas famintas e rotas levam, com toda a força de suas almas, a outras pessoas, também famintas e rotas, pode ser considerada uma farsa? Ou seria uma alegoria, um espetáculo mínimo para dentro daquelas vidas tão perdidas?

IRMÃ ROSÁRIO
Não compreendo.

BARTOLOMEU
Imagine um menino, Irmã Rosário.

IRMÃ ROSÁRIO
Um menino?

BARTOLOMEU
Sim.  Feche os olhos. (IRMÃ ROSÁRIO fecha os olhos, sons de vento)

Quadro 2

(À medida que IRMÃ ROSÁRIO ouve o relato, ao fundo, entra o MARQUÊS, lentamente, tendo nas mãos um pequeno castiçal com vela acesa. Não há mais clarão em sua entrada. A partir deste instante, a iluminação da peça se altera completamente, é  um outro momento)

BARTOLOMEU
Aves cruzam os céus. São andorinhas. O Sol é muito quente, abrasivo. Se compararmos com o de Toledo. As nuvens são altas, bem distantes umas das outras. O céu aberto. Um azul infinito. Os ventos fortes e cortantes anunciam a boa nova. O mar está bem à frente.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu nunca vi o mar.

BARTOLOMEU
Shh!...

(quando BARTOLOMEU cobre com a mão os olhos de IRMÃ ROSÁRIO, novo foco suave sobre os personagens. Sons de vento)

(na penumbra, o MARQUÊS olha para os lados e, percebendo BARTOLOMEU e IRMÃ ROSÁRIO, ele acende outras velas do ambiente com o castiçal que tem à mão. senta na cadeira, pousa o castiçal na mesa, e passa a assistir à cena)

BARTOLOMEU
A imensidão das águas acalma e nos conduz ao infinito de Deus. As caravelas entram pela baía, estão carregadas de novidades. A mata é muito densa. Mas também muito agradável. Existe um menino, muito tímido. Ele está entregue ao seu mundo de estudos e orações. Em seus sonhos, ele ousa subir até o morro mais alto que encontra. Deixa o seu mundo de realidade para trás. É como se o menino permitisse, por instantes únicos e esplêndidos, que sua vida se misturasse à beleza da Deusa Mãe. A Terra e o Céu.


IRMÃ ROSÁRIO
Divinos.

BARTOLOMEU
Como se tudo aquilo em que ele acreditasse fosse diferente. Fosse ao contrário. Então, ao mesmo tempo, o infinito exala um doce mistério em tudo isso. Algo inexplicável. O menino percebe. Ao chegar ao topo desta montanha muito alta, ele olha. Atentamente. O vôo de uma ave, no céu. Ela está livre. A ave descobre o seu próprio caminho entre os ventos. Vasculha, desliza, penetra. Ninguém interfere. O menino sonha com esse vôo. Com essa liberdade. Mais leve que o próprio ar. Seu nome?... Bartolomeu.

IRMÃ ROSÁRIO
(sorri) Bartolomeu!

BARTOLOMEU
A terra de onde ele veio fica bem longe daqui. Noutros mares. Em praias nunca dantes navegadas. Um paraíso. Do outro lado do Oceano. Como se pedisse em seus sonhos que uma ponte viesse buscá-lo. Para redimir, afinal. E para completar seus propósitos maiores. Bartolomeu que veio para voar.

IRMÃ ROSÁRIO
Voar é possível?

(cessa o som de ventos)

BARTOLOMEU
(sorri. pausa, tira a mão diante dos olhos de IRMÃ ROSÁRIO) Consegue ver?

(ela abre os olhos, já sentindo algo estranho, e vira seu rosto na direção do MARQUÊS, que sorri para ela)

IRMÃ ROSÁRIO
Sim.

BARTOLOMEU
O que você vê?

IRMÃ ROSÁRIO
Eu vejo...

(IRMÃ ROSÁRIO anda solenemente até o MARQUÊS. BARTOLOMEU a acompanha com os olhos. IRMÃ ROSÁRIO chega diante do MARQUÊS, pára, e faz o mesmo gesto com a mão, como se desenhasse algo diante do rosto dele, sem tocá-lo. Pausa)

IRMÃ ROSÁRIO
Você é fantasma?

MARQUÊS
Não. (pausa. sorri para IRMÃ ROSÁRIO)

(abre a luz)

MARQUÊS
(BARTOLOMEU e MARQUÊS se vêem, MARQUÊS abre um sorriso) Te encontrei em Toledo, professor! (deixa IRMÃ ROSÁRIO)

BARTOLOMEU
Meu caro amigo!

MARQUÊS
Padre Bartolomeu de Gusmão!

(os dois caminham em direção um do outro, muito alegres, abraçam-se)

IRMÃ ROSÁRIO
(confusa, olha a cena) Padre?

BARTOLOMEU
(olha para o MARQUÊS) Quanto tempo?

MARQUÊS
O senhor sabe quanto tempo! Sua memória não falha jamais! (ri) Talvez uns quatro ou cinco anos!


BARTOLOMEU
É mais do que isso.

MARQUÊS
Não importa! Aliás, tudo importa! A verdade é que eu passei primeiro em Lisboa e soube das novidades.

BARTOLOMEU
Como me encontrou aqui?

MARQUÊS
Tenho meus meios.

BARTOLOMEU
(para IRMÃ ROSÁRIO, que estranha muito esta nova  presença) Irmã Rosário, eis a visita de que falei! Quero que conheça o aluno mais fiel que qualquer professor na face da Terra poderia ter!

MARQUÊS
Sem exageros, por favor.

BARTOLOMEU
(leva o MARQUÊS até IRMÃ ROSÁRIO) Este gentil senhor aqui se chama Joaquim Francisco de Sá Almeida e Menezes. Foi meu aluno de Matemática, tem o título de Conde de Penaguião, Marquês de Abrantes, é Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo, etc., etc..

MARQUÊS
Marquês de Abrantes soa melhor.

BARTOLOMEU
Como quiser. Esta é a Irmã Rosário de La Cruz.

MARQUÊS
(para IRMÃ ROSÁRIO) Irmã.

IRMÃ ROSÁRIO
Senhor.

MARQUÊS
Não sou fantasma. (sorri para IRMÃ ROSÁRIO, que franze as sobrancelhas)

BARTOLOMEU
(para o MARQUÊS) Fique sabendo que aqui eu estou sob os mais restritos cuidados de nossa Irmã Rosário. Eu não posso colocar sequer um pé fora do meu leito sem que ela não tenha notícia.

MARQUÊS
Não poderia estar em melhores mãos.

IRMÃ ROSÁRIO
(para o MARQUÊS, visivelmente incomodada com a presença dele) Tenho uma curiosidade. Senhor, se me permite. Como entrou aqui, no hospital?

BARTOLOMEU
Irmã, nossa visita acabou de chegar.

MARQUÊS
Não, não há problema.

IRMÃ ROSÁRIO
Sim, claro. Perdão. (tom) Padre Bartolomeu. (pausa) Acho melhor deixá-los a sós para que possam conversar.

BARTOLOMEU
(para IRMÃ ROSÁRIO) Irmã, sobre meu nome ser Bartolomeu e não Miguel, eu realmente peço mil desculpas pelo meu irmão, frei João. Por ele ter me registrado com outro nome.

IRMÃ ROSÁRIO
Não me diga que haverá mais alguma outra surpresa esta noite.

BARTOLOMEU
Irmã Rosário, antes que saia, eu preciso pedir um imenso favor.

IRMÃ ROSÁRIO
Pode deixar, que eu irei me acostumar ao seu nome... Padre Bartolomeu. Prometo.

BARTOLOMEU
Antes disso, Irmã. Eu vou necessitar de um tacho de metal. Um recipiente, um vasilhame. Haveria essa possibilidade?

IRMÃ ROSÁRIO
Um tacho. (a princípio estranha) Certamente.

BARTOLOMEU
Gracias.

IRMÃ ROSÁRIO
 Devo sair agora. Vou fazer minha ronda. Ver outros pacientes. (para o MARQUÊS) Senhor.

MARQUÊS
Irmã.

(IRMÃ ROSÁRIO sai)

 
Quadro 3

(silêncio)

MARQUÊS
Ela se chateou?

BARTOLOMEU
Não. (tom) Mas conte-me! Como foi recebida a minha fuga estratégica de Lisboa?

MARQUÊS
Prefere que eu comece pelos fuxicos no Paço Imperial? Ou pelo que diz o povo, nas ruas? Ou ainda, se preferir, posso recitar algum soneto infame daqueles seus inimigos poetinhas!

BARTOLOMEU
(Argh!) Não, por favor, pule essa etapa. De coisa infame já me basta a morte. E a Gazeta de Lisboa Ocidental? O que diz?

MARQUÊS
(tira uma edição do jornal de dentro de seus pertences, e entrega a BARTOLOMEU) Nem uma palavra.

BARTOLOMEU
Típico. (abre o jornal, por alto, analisa rapidamente)

MARQUÊS
Aliás, a Academia Real de História, da qual o senhor faz parte, nem ela se pronunciou.



BARTOLOMEU
Previsível. É bem capaz que eles renovem minha cadeira na Academia sem ao menos se referirem a mim, nos discursos.

MARQUÊS
Meu pai me contou por alto o que houve, assim que cheguei a Lisboa. Confesso que não entendi muito bem.

BARTOLOMEU
Como ele está?

MARQUÊS
Preocupado com o senhor.

(silêncio)

BARTOLOMEU
(fecha o jornal, põe de lado) Estou morrendo, meu caro. Tenho sintomas de febre tifóide. É o que dizem. Já tive alguns delírios. Segundo consta, esta é a minha última noite. Por isso, devido a essa urgência, se me permite, respeitosamente irei chamá-lo apenas de você. Por ser mais jovem que eu. Nada mais. Seus títulos de nobreza de modo algum alteram nossa amizade.

MARQUÊS
Como sabe que está morrendo?

BARTOLOMEU
Eis o motivo por que você está aqui.

MARQUÊS
Vim para uma visita.

BARTOLOMEU
Você veio para um projeto. Não se assuste, meu caro. Não se trata de nada muito misterioso. Mas você é a única pessoa no mundo capaz de entender não só o meu raciocínio como também aonde pretendo chegar.

MARQUÊS
Que projeto é esse?

BARTOLOMEU
O aeróstato. A máquina voadora.

MARQUÊS
Mas já o fizemos. O aeróstato foi uma sensação em Lisboa.

BARTOLOMEU
O aeróstato foi a grande piada de Portugal. E por culpa nossa, meu rapaz. Minha e sua.

MARQUÊS
(senta-se) Mas e tudo o que fizemos, Professor?... Os panfletos que o senhor pediu para eu desenhar com a estampa da “Passarola”! Nós imprimimos aqueles panfletos falsos e enviamos para a Europa inteira! E sabe lá Deus mais pra onde.

BARTOLOMEU
O que tem?

MARQUÊS
A nossa idéia não era proteger Portugal?

BARTOLOMEU
Era.

MARQUÊS
Creio que tivemos sucesso.

BARTOLOMEU
Acredita realmente nisso?

MARQUÊS
Não precisávamos impedir que os mouros e outros reinos copiassem o projeto?

BARTOLOMEU
Concordo. Foi uma bela farsa. Foi tudo muito divertido. Protegemos Portugal. E nos transformamos na comédia da Europa! 

MARQUÊS
Eu não entendo. Por que o aeróstato? Por que este projeto?

BARTOLOMEU
Porque ainda está em tempo.

MARQUÊS
Em tempo de quê? Fizemos alguma coisa de errado, naquela época?  Professor, foram mais de cinco vôos do balãozinho. Alguns deram certo, outros nem tanto, tudo bem. Mas nós fizemos!

BARTOLOMEU
(grave) O projeto foi arquivado pelo Santo Ofício. Foi trancafiado. Para sempre. A sete chaves. Na Biblioteca do Vaticano.

MARQUÊS
Não era de se esperar outra coisa da parte deles.

BARTOLOMEU
E é aí que nós entramos.

MARQUÊS
Mas não se tem mais nada a fazer.

BARTOLOMEU
A História, meu caro! Ela é contada de duas formas! Uma é como ela aconteceu, de fato! Sim, NÓS FIZEMOS VOAR! A outra é como querem que ela transpareça.

MARQUÊS
Mas isso não tira o nosso mérito!

BARTOLOMEU
 (interrompe, enfático) O nosso mérito, meu jovem, foi apenas o fato! O vôo do balão! Mas não a decorrência dele! (tom) Você era bem jovem quando tudo aconteceu. Isso foi há quinze anos atrás.

MARQUÊS
Eu tinha quatorze anos. 

BARTOLOMEU
E desenhava muito bem, por sinal.

MARQUÊS
Obrigado. Falar nisso, ainda rabisco alguma coisa. (tira de suas coisas umas folhas de papel e as  passa para BARTOLOMEU)

BARTOLOMEU
(examina) Ótimo. Vamos precisar disso. (tom) A verdade é que havia coisas que eu não podia dizer a você naquela época, com medo de confundir a sua cabeça. (devolve as folhas ao MARQUÊS)

MARQUÊS
O que tinha para me dizer?

Quadro 4

(abre imediato foco em IRMÃ ROSÁRIO, e nesse instante MARQUÊS continua pensativo)

IRMÃ ROSÁRIO
O que tinha pra dizer a ele?

BARTOLOMEU
Não compreendo o que diz, Irmã Rosário.

IRMÃ ROSÁRIO
Claro que o senhor compreende, Padre Bartolomeu.

BARTOLOMEU
Peço perdão mais uma vez.

IRMÃ ROSÁRIO
Por que o senhor é padre? Por que não me disse isso antes? O que significa isso tudo? Mais um dos seus delírios? O que faltou contar a ele que eu também não sei?

BARTOLOMEU
Calma, Irmã. Sente-se primeiro. (ela se senta ao lado do MARQUÊS) Ótimo. O que a preocupa?

IRMÃ ROSÁRIO
O que está acontecendo? (aponta o MARQUÊS, ao seu lado) Por que eu vejo este moço nos meus sonhos e visões? Do que se trata, afinal? Por favor, não me esconda nada.

 (BARTOLOMEU caminha para pensar)

IRMÃ ROSÁRIO
O senhor costuma ter perguntas e respostas na ponta da língua.

BARTOLOMEU
Irmã, digamos que sim. Que você está tendo visões e que elas não são de fantasmas.

IRMÃ ROSÁRIO
Não são? Como sabe? E ele aqui, o que é?

BARTOLOMEU
E se tudo isso o que estamos vivenciando JUNTOS não passar de um fruto de nossa vontade, de nossa imaginação? Um exercício?

IRMÃ ROSÁRIO
Um exercício? Padre, eu não tenho tempo para pensar nisso! Há muita coisa pra fazer neste Hospital! Tem muita gente doente, alguns quase morrendo!

BARTOLOMEU
Como eu.

IRMÃ ROSÁRIO
O senhor não está morrendo! (faz o sinal da cruz) Deus me livre e guarde! Isso não é coisa que se diga.

BARTOLOMEU
Irmã, e se este jovem rapaz veio para nos ajudar?

IRMÃ ROSÁRIO
Ajudar em quê?

BARTOLOMEU
Cada um de nós tem uma idéia do que precisa.

IRMÃ ROSÁRIO
(levanta-se, caminha) Eu não compreendo! Esta noite tem sido muito estranha. Primeiro o seu irmão, seja lá que nome que ele tenha, ele some, desaparece! Depois o senhor passeia pelos corredores do hospital como se não estivesse doente! E finalmente (aponta o MARQUÊS) ele!

BARTOLOMEU
Ele é apenas uma visita! Por que você está tão incomodada, Irmã Rosário? Temos que aproveitar a oportunidade! Se você ainda não percebeu, a luz mudou.  O tempo está girando em outro compasso. É um outro momento, talvez ele tenha vindo para nos mostrar caminhos, Irmã. Temos coisas a fazer.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu já tenho muita coisa pra fazer! E além disso, não posso desviar minha atenção com outras idéias. Eu sou apenas uma religiosa, Padre Bartolomeu.

BARTOLOMEU
Você é uma mulher, Irmã Rosário. Antes de mais nada.

IRMÃ ROSÁRIO
Sou Irmã de Caridade aqui, do Hospital de La Misericórdia de Toledo.

BARTOLOMEU
Nunca pensou em deixar o hábito?

IRMÃ ROSÁRIO
Como?

BARTOLOMEU
Nunca pensou em se casar? Em sair daqui, dessas paredes frias do Hospital de La Misericórdia e encontrar lá fora um homem que a faça feliz, que a ouça, que a compreenda?

IRMÃ ROSÁRIO
Há toda uma história, Padre Bartolomeu.

BARTOLOMEU
A sua história oficial, podemos dizer assim?

IRMÃ ROSÁRIO
Eu não tenho mais essa história oficial, como o senhor está chamando, a partir do momento em que entrei para o Convento. Toda a minha vida está devotada a Deus.

BARTOLOMEU
A Deus! Não à Igreja.

IRMÃ ROSÁRIO
O senhor está delirando de novo! Voltou a dizer blasfêmias!

BARTOLOMEU
Você é uma mulher, Irmã Rosário. Está vestida de hábito, é só isso. Nada é eterno nessa vida, nem mesmo os livros. Um dia eles viram pó, e tudo neles vai desaparecer. Pode ser que você nem perceba, mas está mergulhada numa verdadeira areia movediça da qual não tem como sair. E ninguém para te jogar uma corda.

 IRMÃ ROSÁRIO
Eu só quero a verdade, Padre Bartolomeu.

BARTOLOMEU
(aponta a cabeça de IRMÃ ROSÁRIO) Ela está aqui. (aponta o coração dela) E aqui, Irmã Rosário. E em nenhum outro lugar.

(instantes. IRMÃ ROSÁRIO respira, cruza os braços)

BARTOLOMEU
O que eu tinha para dizer?

(IRMÃ ROSÁRIO olha para BARTOLOMEU, cai o foco dela, acende a luz anterior da cena)

Quadro 5


BARTOLOMEU
(para o MARQUÊS) Eu sou apenas um brasileiro, meu caro, você sabe disso.

MARQUÊS
Como assim “apenas um brasileiro”?

BARTOLOMEU
Na visão dos outros, eu nasci apenas numa colônia. Sou alguém que representa a América, aquela coisa preciosa, perdida lá do outro lado do Atlântico, batizada de Novo Mundo. Tanto é que por isso, em Lisboa, meus inimigos me chamam de “mazombo”.

MARQUÊS
(levanta-se) E quem se importa com os inimigos? O senhor é um inventor, um historiador, um cientista! Uma das maiores mentes que Portugal já presenciou!

BARTOLOMEU
Fico grato. Mas infelizmente, a essa altura, isso não conta muito. E nós temos que agir com extrema rapidez.

MARQUÊS
Eu não sei o que o senhor quer dizer com tudo isso.

BARTOLOMEU
(com ânimo) Estamos falando de Portugal, meu jovem! Um reino que perdeu tudo aquilo que tinha. Principalmente a sua grandeza dos tempos de Camões, de Vasco da Gama, de Fernão de Magalhães! Enfim, o glorioso passado de Portugal! O País que abriu as portas do mundo conhecido! Que levou a luz ao mundo! Como Prometeu, que levou o fogo dos deuses para os homens! Um reino que perdeu toda a sua hegemonia nos mares! E a Europa ainda por cima fez questão de apagar a sua importância na História. Precisamos restabelecer esta grandeza de Portugal, não mais pelos mares, mas por cima! Pelos céus! E é aí que nós entramos! Não fizemos apenas um balão voar, meu caro. Nós pretendíamos muito mais que isso. Era fazer um País voar. Alcançar os céus feito os albatrozes e causar espanto nas nações européias tal qual Portugal já fez um dia.

(o MARQUÊS respira fundo)

BARTOLOMEU
Estamos lidando com o destino de nossa Lusitanidade. Está em nossas mãos. Nossa missão maior. Cabe a nós o alvorecer de um futuro de glória. Ainda está em tempo. Por isso temos que ser rápidos.

(silêncio)

BARTOLOMEU
Eu fui contratado por Sua Majestade devido à minha prática com criptografia. Documentos secretos de outras nações, papéis e mapas cifrados, tudo isso me chegava às mãos por parte de nossos espiões. Coisas que interessavam a Portugal. E eu decifrei.

MARQUÊS
Ainda bem que caíram em suas mãos.

BARTOLOMEU
Sim, mas as mãos e os olhos eram meus. De um mazombo. De alguém nascido numa colônia, perdida lá do outro lado do Atlântico. (irônico) E o pior: ainda por cima, sou um mazombo com laços de amizade muito estreitos com Sua Majestade, El-Rei, que por sinal foi quem me avisou um dia antes que o Santo Ofício desejava me prender.

MARQUÊS
Daí o senhor ter fugido.

BARTOLOMEU
Pois eu iria certamente me tornar alguém muito “interessante” para a Inquisição. Devido principalmente à minha fama, e graças ao balão que nós dois fizemos voar.

MARQUÊS
(senta-se) Eu não sabia disso, professor.

BARTOLOMEU
Eu estou arruinado, meu jovem. Depois de tudo, nada mais me resta. Os meus pertences todos eu deixei com amigos judeus. Outros eu escondi em Lisboa, joguei no Tejo, não lembro. Em muita coisa eu tive que atear fogo. Em resumo, não tenho mais nada, a não ser a minha própria memória. E você, para levar o nosso projeto a Portugal.

MARQUÊS
Eu?

BARTOLOMEU
Você é uma pessoa da qual a Inquisição jamais iria desconfiar.

MARQUÊS
Levar o projeto?

BARTOLOMEU
Até Sua Majestade. D. João V.

MARQUÊS
Até o rei?

BARTOLOMEU
Por isso você está aqui. É a grande chance. Por sorte, Sua Majestade ainda continua no trono. Eu mesmo não posso retornar a Portugal. E seria lamentável que nosso País não pudesse voltar à vanguarda da Europa uma vez mais. Como vê, nossa missão é maior do que a nossa própria vida.

MARQUÊS
(levanta-se, atordoado pelas idéias) Eu não posso fazer isso, professor! É muito arriscado! E nem sequer temos o projeto!

BARTOLOMEU
Vamos refazê-lo. Se possível, melhorá-lo!

MARQUÊS
Ele foi trancafiado pela Inquisição!

BARTOLOMEU
E é aí que está a nossa brincadeira, a nossa farsa, meu querido Marquês. (aponta a cabeça) O projeto todo está aqui, dentro da minha cabeça. E você irá redesenhá-lo.

MARQUÊS
Sinto muito, professor. Eu não tenho condições. Seremos mortos em dois tempos!

BARTOLOMEU
Seremos apagados em dois tempos se não fizermos nada por Portugal!

MARQUÊS
Não podemos brincar com isso!

BARTOLOMEU
Quem disse que não podemos? Por ordem de quem? E quem disse que a História que eles querem contar não passa de uma grande farsa?

MARQUÊS
Eles...quem?

BARTOLOMEU
A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, meu jovem! Ela e seus tentáculos abomináveis! Os grupos secretos e as poderosas dinastias européias que, juntamente com ela, manipulam os destinos da História. Ontem, hoje e sempre. Este iniciozinho de século está cheirando a França. Algo muito sério está sendo preparado para ela. E cabe a nós dois reverter esse processo! E será por cima! Pelos ares! Com a nossa máquina voadora!

MARQUÊS
Eles sabem que o projeto é seu!

BARTOLOMEU
Claro que sabem! E como faremos isso? Com um nome falso.

MARQUÊS
Professor...

BARTOLOMEU
Eu estou aqui, neste Hospital, com um nome falso. Foi o único jeito possível, do contrário eu poderia ser encontrado pela Inquisição.

MARQUÊS
Mas a freira sabe o seu nome.

(em “freira”, abre-se um foco de luz, onde está IRMÃ ROSÁRIO de posse de seus escritos, pensativa)

BARTOLOMEU
Eu sei disso.

MARQUÊS
Confia nela?

BARTOLOMEU
Piamente.

MARQUÊS
Ela sabe do projeto?

BARTOLOMEU
Pobre Irmã Rosário. Ela já tem problemas suficientes por aqui. Não quis envolvê-la nisso.

MARQUÊS
(respira) Então... O projeto vai ter um autor falso.

BARTOLOMEU
Não. Não será um “autor falso”. Seremos nós mesmos, eu e você! Só que encobertos pelo delicado véu da ilusão. Um pseudônimo. Um código. Um codinome! Uma nova assinatura!

MARQUÊS
Que assinatura?

BARTOLOMEU
(faz uma assinatura no ar) “Lourenço”.

(silêncio)

MARQUÊS
Mas Lourenço é o seu segundo nome, professor! Bartolomeu... Lourenço... de Gusmão.

BARTOLOMEU
Bem-vindo à farsa, meu rapaz. (sorri)

(MARQUÊS afasta-se, pensativo, e se dirige para o foco de luz onde se encontra IRMÃ ROSÁRIO)

Quadro 6

(MARQUÊS entra no foco, IRMÃ ROSÁRIO percebe sua presença. Ele vê ela arrumar os escritos de forma desajeitada, dobrando-os rapidamente e, sem cuidado algum, guarda-os dentro do bolso de seu hábito. Pausa. Ele senta ao lado dela)

IRMÃ ROSÁRIO
(ainda sem olhar para o MARQUÊS) Eu te esperei por muito tempo. (pausa. Ela respira, olha para o MARQUÊS, faz com a mão diante do rosto dele a menção de desenhar algo) Esta sua imagem me tem sido familiar. Eu te vejo sempre. (encerra o desenho) Isso é algo que eu posso dizer numa noite estranha como esta. Em que a sombra provocada pela Lua parece não sair do lugar. Ela não avança. Eu tenho medo de sombras.

MARQUÊS
Por que você guarda esses papéis?

IRMÃ ROSÁRIO
São cartas que enviei para algum rosto. (olha para o MARQUÊS) Provavelmente o seu. Mas eu não tenho certeza.

MARQUÊS
 (toca o rosto dela, faz ele virar em sua direção) Irmã. (IRMÃ ROSÁRIO olha para ele) Por que está me dizendo isso?

IRMÃ ROSÁRIO
Nenhum homem jamais me tocou assim tão perto. (tira delicadamente a mão do MARQUÊS de seu rosto) Eu tenho visões que me atormentam. Desde menina.

MARQUÊS
Que tipo de visões?

IRMÃ ROSÁRIO
Clarões que explodem. São imagens. Não como a sua, que também me aparece num clarão, no meio do nada. Não é isso o que me mete medo.

MARQUÊS
O que é, então?

IRMÃ ROSÁRIO
Quando o clarão se transforma em escuridão.

MARQUÊS
Quando apaga a luz?

IRMÃ ROSÁRIO
Não. Há muita luz. Quase me cega. Não consigo dormir. Quando eu abro o olho, lá está a figura. Ela, que era tão celestial, tão pura, vira outra coisa. E minha cabeça gira e se contorce em perguntas. Será ilusão? Qual é a verdade, nisso tudo?

MARQUÊS
É coisa de Deus?

IRMÃ ROSÁRIO
É outra coisa. Eu ouço vozes, ventos, assobios. E então, como se fosse um encantamento, as vozes ganham corpo. São grandes, gigantes. Muito altos.

MARQUÊS
São pessoas?

IRMÃ ROSÁRIO
(silêncio. muda de assunto. levanta-se. Tom) Quer água? (vai até uma moringa e traz com ela dois copos rústicos de metal) Eu nunca saí de Castela, mas eu sei como são essas viagens. Os cavaleiros alimentam seus cavalos e depois os colocam para descansar numa estrebaria. (serve água) A jornada é sempre muito dura. Mas é colorida pelas paisagens do caminho. Nunca se sabe ao certo o que vai acontecer na viagem. (senta-se) Quando eu era pequena, na aldeia em que eu nasci, os saltimbancos apareciam muito raramente. Era uma alegria. Eles seguem de lugar em lugar. Como vocês, cavaleiros. (bebe)

MARQUÊS
Eu venho de muito longe.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu sei. Seu mundo é maior que uma aldeia. É maior que Toledo.

MARQUÊS
Mas é previsível.

IRMÃ ROSÁRIO
Os rouxinóis cantam em sua cidade?

MARQUÊS
Em Lisboa?

IRMÃ ROSÁRIO
Em Lisboa.

MARQUÊS
Há gaivotas no Tejo. Muitas.

IRMÃ ROSÁRIO
O Tejo? É o mesmo rio que faz a curva aqui em Toledo? El Tajo?

MARQUÊS
Sim. Ele desemboca num estuário, em Lisboa. E depois de fazer a curva, ele encontra o mar. Mas é o mesmo rio que vem daqui de Toledo.

IRMÃ ROSÁRIO
Se eu mandasse uma mensagem numa garrafa, ela chegaria a Lisboa? Chegaria até você?

MARQUÊS
(ri) Talvez.

IRMÃ ROSÁRIO
 (levanta-se, incomodada) Eu preciso ver os outros pacientes.

MARQUÊS
 (levanta-se em seguida) Irmã. (fica diante dela) Esta noite é muito estranha para mim. E, além disso, tenho que tomar uma decisão importante. Talvez a mais importante de toda a minha vida.

IRMÃ ROSÁRIO
Vai se casar?

MARQUÊS
 (ri) Não. É outro tipo de decisão. Eu mesmo sou viúvo.


IRMÃ ROSÁRIO
Viúvo?

MARQUÊS
(olha para as próprias mãos) Mas nesta noite, as lembranças todas... Elas paralisam no tempo. Como a sombra da Lua. Elas vêm à tona. À flor da pele. Como se fosse um livro aberto, algo mágico. São páginas numeradas e com pequenos desenhos. Eu não consigo compreender.

IRMÃ ROSÁRIO
O que diz o livro?

MARQUÊS
 (olha para ela) “Cuidado... Cuidado... Cuidado...” Ele repete essa palavra.

IRMÃ ROSÁRIO
Não fala do futuro?

MARQUÊS
Não.

IRMÃ ROSÁRIO
O que diz do presente?

MARQUÊS
Está em branco. Paralisado. Que nem esta noite. (olhando para IRMÃ ROSÁRIO, entrega o copo delicadamente para ela e sai do foco, que se apaga)

Quadro 7


(MARQUÊS volta ao clima do Quadro 3, em que a luz geral retorna)

MARQUÊS
 (para BARTOLOMEU) Professor, eu não chamaria isso de farsa.

BARTOLOMEU
Não?

MARQUÊS
Tampouco de heresia. A idéia como um todo tem outro nome: loucura.

BARTOLOMEU
Ótimo! Que seja loucura, meu prezado rapaz! Loucura é tudo ao que foi reduzido o nosso pobre País. Portugal, de uma hora para a outra, virou um infeliz ninho de cobras.

MARQUÊS
O projeto, ele foi o motivo de sua fuga?

BARTOLOMEU
Não. E é isso que eu quero que você entenda. (neste momento, IRMÃ ROSÁRIO entra com o tacho. Para ela) Oh, queridíssima Irmã! Que bom que você trouxe o vasilhame.

MARQUÊS
 (leva o tacho até BARTOLOMEU, mostra-o) É o suficiente?

BARTOLOMEU
 (examina o tacho) É, sim. Está perfeito! Gracias! Por favor, se puder deixá-lo embaixo da cama, eu fico muito agradecido.

IRMÃ ROSÁRIO
Está bem. (dirige-se para a cama) Aqui está. (coloca o tacho sob o móvel) Vou trazer água.

BARTOLOMEU
Ótimo.

IRMÃ ROSÁRIO
 (levanta-se) Imaginem só. A fonte de água do claustro simplesmente parou de jorrar. Eu jamais tinha visto isso. 

MARQUÊS
Espantoso.

IRMÃ ROSÁRIO
Sim. A sorte é que o hospital tem alguma provisão. Com licença.

MARQUÊS
Irmã.

BARTOLOMEU
(IRMÃ ROSÁRIO sai, BARTOLOMEU examina a total saída dela, para MARQUÊS) Este tacho é para colocarmos o projeto. Vamos escondê-lo sob um tufo de panos, de roupa de cama.

MARQUÊS
Não será imprudente? Pode ser perigoso deixá-lo assim.

BARTOLOMEU
Vamos manter guarda sobre ele ao longo desta noite. (observa o MARQUÊS) Então? Vejo que está inclinado a arregaçar as mangas e colocar este projeto avante. O que me diz?

 (MARQUÊS olha para BARTOLOMEU, respira e, em vez de responder, senta e coloca a cabeça entre as mãos. BARTOLOMEU o observa, senta-se ao lado dele, enquanto IRMÃ ROSÁRIO entra silenciosamente com uma bandeja rústica de madeira, trazendo uma moringa de água e copos rústicos  de metal) 

BARTOLOMEU
Meu caro, acredite, eu fui acusado de pelo menos quatro coisas.

(IRMÃ ROSÁRIO pára para ouvir)

BARTOLOMEU
A primeira e mais absurda delas, a de que eu estaria armando um complô para envenenar Sua Majestade. (ri, MARQUÊS olha para BARTOLOMEU) Depois, por causa dos nossos experimentos aéreos, eu me tornei “perigoso” para Portugal. Um bruxo, um feiticeiro, com parte com o Diabo. “Como alguém pode querer voar que nem os anjos? Que diga isso para a Inquisição!” Em terceiro, que sou judaizante, que sou amigo de judeus, e que teria me convertido ao judaísmo. Essa seria a mais próxima do real. E finalmente, para fechar com chave de ouro, a de que eu teria me envolvido com uma freira inimiga de Madre Paula, notória amante de Sua Majestade.

MARQUÊS
Madre Paula, a de Odivelas?

BARTOLOMEU
Sim. Já esteve lá?

MARQUÊS
Estive muitos meses depois da morte de Filipa.

BARTOLOMEU
Sua esposa, eu soube. Senti muitíssimo.

MARQUÊS
Fui quatro vezes a Odivelas. Havia uma pessoa por lá. O nome dela era Luísa. Era belíssima. Nos encontrávamos furtivamente.

(IRMÃ ROSÁRIO se serve de água e bebe)

MARQUÊS
Muitos homens a conheciam. Sua beleza era cantada em versos até por estudantes de Coimbra. Da última vez que voltei a Odivelas, a cela de Luísa estava lacrada. Ao sair do Convento, recebi um bilhete anônimo com letra de mulher. Luísa havia morrido num parto. Nunca mais retornei.

(IRMÃ ROSÁRIO faz o sinal da cruz e se aproxima. MARQUÊS e ela se vêem)

BARTOLOMEU
E Filipa, sua esposa?



MARQUÊS
Eu fecho os olhos e ela me vem à mente. A pele delicada. Fina. Extremamente branca. Um francês perfeito em sua voz. O francês que já vinha correndo do sangue da mãe dela. As veias. Era possível ver os caminhos do sangue de Filipa em veias tão bem desenhadas. Na têmpora. Na curva do rosto. Indo para o pescoço. Nos pulsos. Tão logo ela morreu, eu viajei. Fui para fora do País. Desde então, tenho procurado preencher meus pensamentos com outras coisas. (IRMÃ ROSÁRIO olha para MARQUÊS) É impossível fugir a certas lembranças. Se ao menos elas nos contassem o futuro. Para isso estamos vivos. Esta noite é mesmo muito estranha. Uma noite para velar os nossos mortos. Imensamente. (pausa. olha para BARTOLOMEU, enfático) Vamos refazer o projeto, professor. (respira) Por Portugal.

BARTOLOMEU
Ótimo. A noite será nossa irmã.

(BARTOLOMEU sorri, enquanto IRMÃ ROSÁRIO bebe outro gole de água)

(blecaute)

FIM DO ATO I

ATO II

Quadro 1

(blecaute)

Gemidos de dor e golpes de açoite. Instantes. Um foco de luz lateral se acende. Ao centro do palco, à frente, está IRMÃ ROSÁRIO, de costas para a platéia, sem a pala e o véu, cabeça descoberta, o dorso nu, as costas “escritas” em sangue. Ela se golpeia. Quase não resiste às dores, está prestes a desmaiar. Chora.

Ao fundo, estão, em contra luz, BARTOLOMEU e MARQUÊS, quase em silhueta, para a cena do início dos trabalhos. MARQUÊS se senta numa cadeira, de frente para a platéia. Ele desenha em folhas com lápis e régua, borrador, esquadro, material de desenho. BARTOLOMEU anda, pensa, calcula, sempre caminhando. A luz abre aos poucos, privilegiando a cena com IRMÃ ROSÁRIO.

BARTOLOMEU
Duzentas e cinqüenta léguas por dia.

MARQUÊS
É possível?

BARTOLOMEU
Ou mais! E com ela tripulada.

MARQUÊS
Passageiros?

BARTOLOMEU
Dez pessoas! Pode colocar aí.

MARQUÊS
(estanca o desenho por um instante) Não ficará muito pesado?

BARTOLOMEU
De forma alguma! Iremos além! Esta embarcação aérea irá unir os reinos da Europa! Irá levar pessoas aos pólos da Terra. (olha para MARQUÊS) Você tem noção de que ela será montada em Lisboa?... Não tem?

MARQUÊS
Em Lisboa?

BARTOLOMEU
Na quinta de seu pai, em Marvila.

MARQUÊS
Na minha casa?

BARTOLOMEU
É o local mais seguro de Portugal. Ninguém irá desconfiar.

MARQUÊS
Como assim?

BARTOLOMEU
É o único local em que Sua Majestade poderá visitar a máquina sem chamar a atenção da Igreja.

MARQUÊS
E quem irá montá-la?

BARTOLOMEU
Você.

MARQUÊS
Sozinho?

BARTOLOMEU
Não tem ninguém mais qualificado em Portugal para essa missão. Você conseguirá. Arranje alguns auxiliares de extrema confiança. De preferência que sejam totalmente mudos e analfabetos! Só assim eles não terão mesmo o que dizer para o Santo Ofício.

(ao final desta fala, um foco de luz frontal poderosa, um clarão se despeja sobre as costas de IRMÃ ROSÁRIO, que paralisa os golpes, estarrece, treme)

MARQUÊS
Sem o senhor...

BARTOLOMEU
(interrompe) Eu não estarei mais aqui, meu caro Marquês! Não nesta vida.

(silêncio)

MARQUÊS
Santo Cristo, professor! O senhor não vai morrer!

BARTOLOMEU
É exatamente o que acontecerá se este projeto não sobreviver, meu caro! Que a morte é certa, isso já sabemos! O que não é certo na morte é que ela pode ser forjada. Mudam-se os atores da comédia. Um nome pelo outro.

MARQUÊS
O senhor não precisa desse tipo de coisa.

BARTOLOMEU
E a bem dizer a verdade, meu nome pouco importa. Nenhum nome importa! É Portugal quem está em jogo. Mesmo que eu me vá nesta madrugada – e isso temos como certo -, é Portugal quem está em jogo. (pausa) Agora você entende. (percebe o MARQUÊS, absorto em pensamentos) Alguma dúvida?

MARQUÊS
(respira) Todas essas medidas... Esses elementos... As quintessências, o âmbar derretido em éter...

BARTOLOMEU
(pega suas anotações, tira do bolso papéis, desdobra, procura) Como desenhar espíritos e quintessências? Como descrever com palavras todas as forças que possam criar a atração, digamos, entre o âmbar dissolvido em éter e o ingrediente secreto que estamos usando nas esferas armilares?

MARQUÊS
Uma coisa é descrever, outra coisa é desenhar.



BARTOLOMEU
Estamos lidando com algo muito próximo da fantasia humana, meu caro amigo! É essa a nossa virtude!

MARQUÊS
A primeira coisa que o Santo Ofício vai querer saber é do que é feito esse elemento secreto que estamos colocando nas esferas armilares.

BARTOLOMEU
(respira) O “Santo” Ofício.

MARQUÊS
Eles não vão me deixar em paz um minuto sequer em Lisboa. Mesmo com um projeto assinado por um tal “Lourenço”. Do que eles inclusive já vão ficar desconfiando um bocado.

BARTOLOMEU
Qual é o seu medo? Ótimo! Que desconfiem! A assinatura do tal “Lourenço” vai mais confundir do que explicar alguma coisa. Sua Majestade vai aceitar a petição, fique tranquilo. Só você e ele saberão. Ele vai levar adiante o projeto. Vá por mim.

MARQUÊS
Professor. (levanta-se, anda para um dos cantos do proscênio) Eu entendo que o senhor queira desafiar essas pessoas. Mas não é se comprometer demais por um mero capricho da História?

BARTOLOMEU
A História, meu jovem rapaz, dependendo de quem a conte, não passa de uma insensata narrativa de fatos distorcidos. Tal qual a religião, pobre religião! Toda a filosofia da Cristandade ficou lá atrás, e através dos séculos, ela foi distorcida, rearticulada, remontada, redesenhada Concílio após Concílio! Mentira após mentira! Eles reescreveram a Bíblia Sagrada ao sabor dos ventos! Portanto, a História não conta. Meu desafio também não conta. Ele não tem a menor importância. Aliás, tudo o que estamos fazendo aqui e agora não tem importância alguma. Terá, sim, conseqüências, muito mais tarde, basta apenas que nós não renunciemos a essa tarefa. Sei que é colocar em risco a sua integridade, meu caro. Mas acredite. Isso é maior do que qualquer um de nós.

MARQUÊS
Eu não entendo. Mas contra o que estamos lutando, afinal?

(IRMÃ ROSÁRIO já está totalmente vestida e, com respiração ofegante, vira-se lentamente para a luz, com imenso pavor)

BARTOLOMEU
As forças em contrário.

IRMÃ ROSÁRIO
(sempre para a luz) Por favor... Eu não agüento mais...

BARTOLOMEU
São forças organizadas. Involutivas. Contrárias ao progresso do Homem. São forças das quais as famílias e os grupos poderosos da Europa - e principalmente a Igreja de Roma - não passam de reles marionetes. Elas pregam o atraso, sobrevivem dele como a planta parasita sobrevive da árvore. Essas forças escrevem rastros e apagam pessoas da História a seu bel prazer. E se lançam sobre a Terra de forma desmedida. Não sabemos nem como, nem onde, nem quando!

IRMÃ ROSÁRIO
O que desejam? Eu não quero ouvir...

MARQUÊS
Elas são o quê, afinal?

BARTOLOMEU
É maior do que tudo o que nós conhecemos.

IRMÃ ROSÁRIO
(tampando os ouvidos) Por favor...

BARTOLOMEU
Por isso a pressa. A Humanidade está em queda. E tem urgência. Uma verdadeira batalha se trava em escalas que não conseguimos alcançar. Mas se cada um fizer a sua parte já é um bom começo.

IRMÃ ROSÁRIO
(levanta-se muito devagar, sempre olhando para a luz) Vão embora... Saiam daqui....

BARTOLOMEU
Essas forças atuam porque estão presentes em nossa ilusão! Elas circulam por todo o planeta. Por todo o mundo conhecido.

MARQUÊS
Uma maldição?

BARTOLOMEU
É mais do que isso.



IRMÃ ROSÁRIO
(já com a pala e o véu nas mãos, coloca-se de pé, mas sempre olhando para a luz) Ave Maria gratia plena, Dominus Tecum...

BARTOLOMEU
Precisamos agir o mais rápido possível. Para fecharmos as portas para essas forças.

IRMÃ ROSÁRIO
 (entrega solenemente a pala e o véu para BARTOLOMEU) Benedictus tu in mulieribus...Não quero ouvir...Et benedictus fructus ventris tu Iesus.

BARTOLOMEU
(começa a vestir a pala e o véu em IRMÃ ROSÁRIO) Boa parte do que aprendi sobre nossa máquina aérea vem de longe. De um local intraduzível em palavras.

IRMÃ ROSÁRIO
Sancta Maria Mater Dei...Vocês foram minha desgraça....

BARTOLOMEU
Um local cujo esplendor praticamente nega tudo o que sabemos do Mundo.

IRMÃ ROSÁRIO
Ora por nobis pecatoribus...Meu pavor eterno.

BARTOLOMEU
Que derrubaria alicerces. E dogmas da Igreja.

IRMÃ ROSÁRIO
Nunc et in hora mortis nostrae...Eu não sei o que vocês querem...Amen.

(em “Amen”, o foco na freira é trocado por uma luz geral, BARTOLOMEU cumprimenta IRMÃ ROSÁRIO, num salão de baile do século XVIII, e em seguida os dois saem dançando uma música antiga barroca. MARQUÊS senta com a cadeira, de frente para a cena dos dois, e começa a desenhar num bloco, rabiscando a dança, jogando páginas fora e desenhando outras)

BARTOLOMEU
Nós estamos numa era de retrocessos, meu rapaz. E de enganos miseravelmente desastrosos.

IRMÃ ROSÁRIO
Por que eu?

BARTOLOMEU
Onde a covardia gera o temor a qualquer sinal de mudança.

IRMÃ ROSÁRIO
Covardes!



BARTOLOMEU
Falsos senhores que escravizam muitos de nós. Quem dá a esses senhores o direito de distorcer a História?

MARQUÊS
Homens?

IRMÃ ROSÁRIO
Covardes!

BARTOLOMEU
NÃO SÃO HOMENS, MEU CARO! SÃO FORÇAS NEGRAS! OBSCURAS!

IRMÃ ROSÁRIO
COVARDES!

MARQUÊS
Do que é que o senhor está falando?

IRMÃ ROSÁRIO
Do que vocês estão falando?

BARTOLOMEU
 (para o MARQUÊS) Esqueça tudo o que você aprendeu, meu rapaz. Tudo o que você sabe está errado.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu não sei nada!

BARTOLOMEU
E você não será um herege só por pensar diferente da Igreja.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu sou apenas...

BARTOLOMEU
Aliás, não seremos hereges por conversar diretamente com Deus. Não precisamos de sacerdotes, de catedrais, de relíquias e de intermediários para falarmos com Ele! (aponta o terceiro olho) Pois Ele não está no meio de nós? E nós não estamos Nele? Et ego in illo? Não é isso?

MARQUÊS
O que eu sei?

IRMÃ ROSÁRIO
O que eu sou?

BARTOLOMEU
Eu deixei a Igreja, meu rapaz. (passa IRMÃ ROSÁRIO, girando com ela, para o MARQUÊS) A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.

IRMÃ ROSÁRIO
Um punhado de mentiras!

(MARQUÊS e IRMÃ ROSÁRIO passam a dançar)

BARTOLOMEU
Em minhas viagens à Holanda, Inglaterra e França, eu conheci o mundo civilizado.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu quero a verdade!

BARTOLOMEU
Fui apresentado a alquimistas e cabalistas, pessoas que me revelaram o oculto.

IRMÃ ROSÁRIO
Não me escondam nada!

BARTOLOMEU
Coisas que eu já tinha presenciado nas profundezas da América.

IRMÃ ROSÁRIO
Do fundo do coração!

BARTOLOMEU
Esses países têm o progresso, meu jovem!

IRMÃ ROSÁRIO
Eu ainda sou jovem!

BARTOLOMEU
Progresso esse que nos foi arrancado de nossa pobre Península Ibérica através da mitra e dos senhores da terra!

IRMÃ ROSÁRIO
Eu não quero morrer assim! É tudo o que me sobra?

BARTOLOMEU
E de repente tudo se completa, tudo se casa!

IRMÃ ROSÁRIO
E meus desejos? Meus pensamentos?

BARTOLOMEU
Quando eu estive nos mundos internos, eu pude saborear não o crepúsculo, mas sim, a aurora do mundo.


IRMÃ ROSÁRIO
Eu tenho uma vida...(dá giros, IRMÃ ROSÁRIO deixa o MARQUÊS e volta para dançar nos braços de BARTOLOMEU)) Tenho?

BARTOLOMEU
Tudo o que eu aprendi sobre a nossa máquina voadora, é algo muito antigo. Mais antigo que os próprios egípcios! Que a Babilônia! É a evolução! O progresso! O caminho para a Humanidade. E ele foi escrito por Hierarquias e seres evoluídos antes mesmo que o Homem pisasse neste planeta.

IRMÃ ROSÁRIO
Do que é que vocês estão falando?...

BARTOLOMEU
Por isso tudo JAMAIS a Europa vai admitir que a tecnologia oculta vinda da América e que um reles mazombo venham a recontar a História da Humanidade todinha ao contrário! A História do Avesso! Por isso querem nos pegar! Por isso estamos aqui fazendo o que estamos fazendo!

IRMÃ ROSÁRIO
(berrando) DO QUE VOCÊS ESTÃO FALANDO?

(param a dança, instantes, BARTOLOMEU se dirige para o MARQUÊS)

BARTOLOMEU
(alegre) NÓS TEMOS A SAÍDA, MEU JOVEM! E ELA SE CHAMA LIBERDADE!

(IRMÃ ROSÁRIO desmaia, MARQUÊS e BARTOLOMEU ouvem o ruído, olhando juntos para o lado oposto de onde IRMÃ ROSÁRIO está)

MARQUÊS
Ouviu isso? De onde veio?

BARTOLOMEU
Dos corredores.

MARQUÊS
Irmã Rosário?

BARTOLOMEU
Só pode ser. É só ela que está acordada, além de nós. Vou dar uma olhada! Fique aqui.

MARQUÊS
E o projeto?

BARTOLOMEU
Guarde-o. Coloque-o no tacho, embaixo dos panos. Cubra bem. Eu vou procurar a Irmã. Conheço o caminho. Ela não pode estar muito longe. Vá. (sai)

(Quando o MARQUÊS pega o tacho colocado embaixo da cama, com os panos que cobrem papéis, a luz se modifica assim que ele põe o tacho sobre a cama. Retorna o contra-luz deixando MARQUÊS quase em silhueta ajeita papéis colocados, cobre os papéis com panos. Instantes. Um foco de luz mais brando se abre sobre IRMÃ ROSÁRIO. O MARQUÊS vai solene em direção a ela)

Quadro 2

(IRMÃ ROSÁRIO está deitada de costas, em posição de cruz, com aspecto suave)

IRMÃ ROSÁRIO
Esses desenhos são seus? (senta-se. Ele se agacha. Os dois  manuseiam folhas de papel)

MARQUÊS
(olha para trás, não encontra BARTOLOMEU. Para IRMÃ ROSÁRIO) Não é nada demais. Costumo rabiscar coisas quando viajo.

IRMÃ ROSÁRIO
(folheando) Eles são... Imagens... De lugares... E pessoas. (senta-se no colchão) São muito ricos.

MARQUÊS
São só impressões.

IRMÃ ROSÁRIO
(folheando) Impressões! (tom) Imagino que Toledo tenha te impressionado muito.

MARQUÊS
Sim. Para qualquer canto que se olhe, a cidade é um desenho novo.

IRMÃ ROSÁRIO
(para MARQUÊS) Quando te vi pela primeira vez, tive a impressão de que você era um fantasma.

MARQUÊS
Eu não sou fantasma.

IRMÃ ROSÁRIO
Mas por que então você faz parte desta noite tão diferente? O que há de especial nela? Eu consigo sentir o tempo caminhando noutro compasso. É como se fosse um chamado. Para o quê eu não sei.

MARQUÊS
Isso te inspira a escrever?

IRMÃ ROSÁRIO
Minhas cartas? Certamente que não. (levanta-se. Pausa) Eu penso coisas. Às vezes desconexas umas das outras. Na maior parte, são palavras e gestos. Toques. Olhares. Alguns gentis. Outros nem tanto. Consegue me entender?

MARQUÊS
Não.

IRMÃ ROSÁRIO
(para MARQUÊS, aproxima-se muito) São... (faz um círculo imaginário, com o dedo, como se desenhasse lentamente diante do rosto do MARQUÊS)... Como espectros. Como sua falecida esposa. Que você tanto amou. O rosto dela. As veias. Como você descreveu. (pausa) Eu acho que estou cega.

MARQUÊS
Por quê?

IRMÃ ROSÁRIO
Só pode ser. Eu me penitencio. Minhas costas estão escritas em sangue. No meu coração entregue a Deus, no momento mais doloroso de um dia inteiro, aquele, em que me encontro sozinha, comigo mesma, eu me desespero.

MARQUÊS
O que você sente?

IRMÃ ROSÁRIO
Angústia. Por causa das minhas visões, desde pequena, meus pais me colocaram no Convento. Tinham medo de que eu fosse uma bruxa. Que eu poderia ser queimada na fogueira e eles também seriam. Depois, fui trazida pra cá. As madres não me queriam mais entre elas. Disseram que eu estava perdendo o juízo. E que eu seria um perigo para as outras irmãs. Ninguém pode me ajudar.

MARQUÊS
Eu posso falar com a Madre Superiora. Onde é esse Convento? É aqui mesmo, em Toledo?

IRMÃ ROSÁRIO
Odivelas é a mesma coisa?

MARQUÊS
Como?

IRMÃ ROSÁRIO
O Convento onde você esteve.

MARQUÊS
O que tem?

IRMÃ ROSÁRIO
Lá também tem as mesmas coisas que eu já vi por aqui?

MARQUÊS
Você diz...

IRMÃ ROSÁRIO
Coisas. Pessoas que entram e saem. Escondidas. No meio da noite. Coisas que eu vi, que se eu disser, é como se eu esperasse a estaca da fogueira. Meu corpo ardendo em chamas. O fogo subindo aos céus e limpando a alma.


MARQUÊS
Sei como você se sente.

IRMÃ ROSÁRIO
Você já viu a fogueira, quando arde?

MARQUÊS
Já.

IRMÃ ROSÁRIO
Aquilo não é um espetáculo. Os saltimbancos não têm porque cantar ou dançar quando uma pessoa é queimada viva. A vontade que eu tenho é de colocar a fogueira dentro de uma garrafa e mandar rio abaixo.

MARQUÊS
Ela já chegou em Lisboa.

IRMÃ ROSÁRIO
A garrafa?

MARQUÊS
Lisboa arde em chamas. Fede a carne humana. Para as pessoas nas janelas, aquilo não passa de pura diversão.  Tanto é que visitantes não acreditam como aquilo ainda possa acontecer por lá. Uma cidade tão suave.

IRMÃ ROSÁRIO
Por isso não quero voltar para lugar algum. Nem para minha cela. Nem pro meu catre. Não há lugar pra mim.

MARQUÊS
Não diga isso.

IRMÃ ROSÁRIO
Não digo isso? O que me resta? Tentar ajudar os outros e só o que vejo são pessoas morrerem, dia após dia, diante dos meus olhos? O próximo será Don Miguel, nesta mesmíssima noite. Eu ficarei aqui sozinha. Eu e minhas sombras.


MARQUÊS
Don Miguel, você quer dizer... O Padre Bartolomeu?

IRMÃ ROSÁRIO
Eu já não sei de mais nada. Houve até noites em que eu sonhei contigo. Antes mesmo de te conhecer.

MARQUÊS
Comigo?

IRMÃ ROSÁRIO
Eu te percebi vindo em minha direção. Depois, por um momento, um pássaro desenhou uma sombra enorme na grama verde. Um rastro inteiro, todo negro. Aquilo me turvou a vista. Eu não entendi coisa alguma. Apenas era a sua figura, isso era muito claro. Naquele dia eu escrevi um poema.

MARQUÊS
Você tem esse poema?

IRMÃ ROSÁRIO
Tenho. (aponta a cabeça) Aqui. Achei que não era digno de colocar no papel.

MARQUÊS
Declama pra mim.

(a luz abre muito baixa, em resistência, mostrando BARTOLOMEU assistindo à cena, agachado)

IRMÃ ROSÁRIO
Não. Eu guardei este soneto inteiro. Somente para minhas dores mais íntimas. Não tenho permissão para comentar esse tipo de assunto. Estou falando com você essas coisas... Que só com Nossa Senhora eu compartilho, nas minhas orações. Em silêncio eterno. Eu não sei mais o que estou fazendo. (ele toca a mão no rosto dela. Pausa. Ela fecha os olhos, e respira forte, deixa cair o rosto na mão dele. Ela toca um dedo no rosto dele e desenha, de olhos fechados, algo sobre o rosto do MARQUÊS) Um pássaro... Com asas negras... Um rastro na grama... Não é um rouxinol. (ela abre os olhos)

(silêncio)

IRMÃ ROSÁRIO
Por favor, não fale com a Madre Superiora.

(o MARQUÊS beija IRMÃ ROSÁRIO, é retribuído, e depois ela se afasta)

IRMÃ ROSÁRIO
Eu vou rezar por ti. (sai)

(MARQUÊS fica transtornado, tentando se controlar)

Quadro 3

(BARTOLOMEU “entra em cena”, visivelmente cansado)

BARTOLOMEU
Irmã Rosário?

(MARQUÊS faz menção de “não” com a cabeça. Instantes, BARTOLOMEU se abate)

MARQUÊS
(percebe o estado de BARTOLOMEU) Professor!

BARTOLOMEU
Estou bem... Só Preciso me sentar...

(MARQUÊS se apressa e leva a cadeira até BARTOLOMEU, coloca-o sentado)

BARTOLOMEU
Obrigado.

MARQUÊS
Está melhor?

BARTOLOMEU
Sim... Traga-me o tacho, por favor.
]
MARQUÊS
Claro. (vai até o tacho e o traz)

BARTOLOMEU



Precisamos correr com isso. Em que pé está a coisa? Esta é mesmo una fria y dura noche toledana, que infunde medo na alma.

MARQUÊS
(começa a tirar o projeto debaixo dos panos do tacho) Faltam alguns ajustes, professor. Veja.

BARTOLOMEU
Está muito próximo do final.

MARQUÊS
Sim.

BARTOLOMEU
É necessário que acabemos isso muito rápido para que você possa retornar a Portugal. (levanta-se) Ao trabalho, meu rapaz! Ao trabalho. (sente-se mal uma vez mais, retorna a sentar)


MARQUÊS
O senhor está bem? O que sente? (guarda imediatamente os papéis sob os panos no tacho)

BARTOLOMEU
A proximidade com o fim. A urgência. As poucas horas que me restam.

(MARQUÊS o assessora, de alguma forma ou outra, quando entra IRMÃ ROSÁRIO)

IRMÃ ROSÁRIO
Padre! (corre até a cena, assessora, para MARQUÊS) Me ajude aqui! Vamos colocá-lo na cama!

BARTOLOMEU
Irmã! Pensei que alguma maldição a tivesse levado.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu não acredito em maldições, Padre Bartolomeu.

BARTOLOMEU
Obrigado.

IRMÃ ROSÁRIO
Pelo quê? Eu não faço nada além da minha obrigação.

BARTOLOMEU
Por ter decorado meu nome.

IRMÃ ROSÁRIO
(para o MARQUES, enquanto colocam BARTOLOMEU na cama) Está delirando!

BARTOLOMEU
Um delírio pensado, Irmã Rosário!

IRMÃ ROSÁRIO
Vamos cobri-lo!  Deve estar com febre! (põe a mão na testa de BARTOLOMEU)

BARTOLOMEU
(segura a mão dela) Um delírio planejado! Com um objetivo!

IRMÃ ROSÁRIO
(desvencilha-se da mão de BARTOLOMEU com cuidado) Fique aqui com ele! Eu vou trazer água quente. (sai rapidamente)

MARQUÊS
Está bem.

BARTOLOMEU
Avante, meu rapaz! Não há tempo!


MARQUÊS
Primeiro o senhor, professor!

BARTOLOMEU
Primeiro Portugal, acima de tudo!

MARQUÊS
Sem o senhor, não teremos Portugal.

BARTOLOMEU
Sem você, não teremos Portugal! Não temos tempo! Ao trabalho! La noche toledana expõe seus fantasmas! Todas as almas estão em conluio!

MARQUÊS
Pare com isso, professor!

BARTOLOMEU
Ah, Toledo de mil histórias! Está começando a contar mais uma!

MARQUÊS
Não estamos numa noite toledana!

BARTOLOMEU
(segura o MARQUÊS) Está em suas mãos, meu caro Marquês! Essa máquina aérea precisa ser levada o quanto antes a Sua Majestade! Você sabe disso melhor do que eu! Não fuja a esta responsabilidade maior em troca de alguma migalha do destino! Você será lembrado por isso!

MARQUÊS
Eu não quero ser lembrado por isso, professor! O mérito é todo seu!

BARTOLOMEU
Não...decepcione...Portugal...

BARTOLOMEU começa a deitar, primeiramente pousa a testa sobre o ombro do MARQUÊS. IRMÃ ROSÁRIO entra com água quente.

(blecaute)

Quadro 4

Sons de vento, sinos de catedral, trinados de rouxinol. Quando a luz acende novamente, MARQUÊS está concentrado desenhando o projeto, IRMÃ ROSÁRIO fica parada, em pé, ao lado da cama onde está deitado BARTOLOMEU.

BARTOLOMEU
Imagine um menino

IRMÃ ROSÁRIO
Um menino?

BARTOLOMEU
Sim. Feche os olhos.

(IRMÃ ROSÁRIO fecha os olhos)

(blecaute)

(ainda ao som da voz de BARTOLOMEU, a luz se acende e ele está sentado, à cama. MARQUÊS continua desenhando e calculando. IRMÃ ROSÁRIO anda lentamente e segue dobrando papeis, cartas, escritos)



BARTOLOMEU
Esse menino muito tímido. Ele está entregue ao seu mundo de estudos e orações. Em seus sonhos, ele ousa subir até o morro mais alto que encontra.
.
(blecaute)

(enquanto BARTOLOMEU caminha pelo ambiente e segue em seu delírio, IRMÃ ROSÁRIO está parada diante de MARQUÊS que finalmente a percebe, gira na cadeira em direção a ela para desenhá-la.

BARTOLOMEU
Aves cruzam os céus. São andorinhas. O Sol é muito quente, abrasivo. Se compararmos com o de Toledo. As nuvens são altas, bem distantes umas das outras. O céu aberto. Um azul infinito.

(blecaute)

(BARTOLOMEU está sentado no proscênio)

IRMÃ ROSÁRIO está com as cartas na mão. Faz a menção de entregar uma delas. Percebe que está sendo desenhada. Desfaz a menção de entregar a carta.

(blecaute)

BARTOLOMEU
Os ventos fortes e cortantes anunciam a boa nova. O mar está bem à frente. A imensidão das águas acalma e nos conduz ao infinito de Deus.

IRMÃ ROSÁRIO vagarosamente tira o véu e a pala, ficando com a cabeça descoberta. Fica apenas com o hábito. Ele pára de desenhar.

(blecaute)

BARTOLOMEU
O menino então deixa o seu mundo de realidade para trás. É como se ele permitisse, por instantes únicos e esplêndidos, que sua vida se misturasse à beleza da Deusa Mãe. A Terra e o Céu. Divinos.

(o MARQUÊS está em pé, diante dela. E a beija).

(blecaute)

BARTOLOMEU
Como se tudo aquilo em que ele acreditasse fosse diferente. Fosse ao contrário. Então, ao mesmo tempo, o infinito exala um doce mistério em tudo isso. Algo inexplicável. O menino percebe. Ao chegar ao topo desta montanha muito alta, ele olha. Atentamente. O vôo de uma ave, no céu. Ela está livre.

(Ao acenderem as luzes novamente, os dois estão abraçados, indo a caminho da cama)

(blecaute)

BARTOLOMEU
Três coisas são necessárias, portanto, para que a ave possa voar: asas, vida e ar. Asas para subir, vida para movê-las. E ar para sustentá-las. De tal sorte, que faltando um desses três requisitos, ficam inúteis os outros dois. Porque asas sem vida não podem ter movimento. Vida sem asas não pode ter elevação. E ar, sem estes dois primeiros, não pode ser sulcado. Porém, dando-se essas três circunstâncias, asas, vida e ar, conforme a proporção necessária, é infalível o vôo, como estamos vendo na ave.

 (Em back light, os dois aparecem deitados sobre a cama, ele sobre ela, totalmente vestidos, dando a entender que ela foi penetrada pela primeira vez em sua vida. Não há som)

Dessa forma, a ave descobre o seu próprio caminho entre os ventos. Vasculha, desliza, penetra. Ninguém interfere. O menino sonha com esse vôo. Com essa liberdade. Mais leve que o próprio ar. Mais leve que a própria vida.

(blecaute)

Quadro 5

(Instantes. uma vela é acesa. BARTOLOMEU está sentado na boca de cena, com um candeeiro e vela acesa à sua mão)

BARTOLOMEU
(fixo na vela) Uma vela acesa. Uma fonte de calor. Exatamente como esta. O fogo não permite estagnação. Em seguida uma bolha de sabão, vinda de algum ponto, percorre o ambiente. (usa o dedo como se fosse a bolha) Não se sabe exatamente porque, mas a bolha, em sua lógica inabalável, movimenta-se pacientemente por cima da vela. No momento exato em que a bolha de sabão atinge o topo da chama, ela sobe. (acompanhando uma bolha imaginária. pausa) É o princípio básico do vôo de um objeto mais leve que o próprio ar. (sopra a vela)

(blecaute)

(Quando a luz geral acende, encontram-se apenas BARTOLOMEU e o MARQUÊS, que desenha o projeto, está inquieto)

BARTOLOMEU
Como estamos?

MARQUÊS
Praticamente no fim.

BARTOLOMEU
Ótimo. Mesmo porque já está amanhecendo.

MARQUÊS
Ainda está escuro. Esta é a noite mais estranha de minha vida.

BARTOLOMEU
De minha vida, também é a noite mais estranha. É o momento de olharmos bem o que estamos deixando. Como se fosse um desenho, estampado para sempre numa folha de papel.

MARQUÊS
O senhor não vai morrer, professor. Não esta noite.

BARTOLOMEU
Assim está escrito e se cumprirá. Não pairo dúvidas sobre esse tema. Sua presença aqui, meu rapaz, é de vital importância, você sabe. Estamos colocando um clarão de luz onde apenas trevas estão escritas. É curioso. (pega um copo e se serve de água da moringa)

MARQUÊS
O quê?

BARTOLOMEU
O quanto de Deus existe em todos nós.

MARQUÊS
No Homem ou na Natureza?



BARTOLOMEU
No Homem, especificamente. O quanto Dele está inserido em nós, por maior que seja. O contrário também é certo. Estamos nele. (bebe)

MARQUÊS
Et ego in illo. Como aquele seu sermão

BARTOLOMEU
(sorri) Et ego in illo. Somos pedaços desse Todo. Milhões de pedaços. Pedaços que não se entendem.

(entra IRMÃ ROSÁRIO, com um candeeiro na mão, vela acesa. Ela fica quieta, esperando, BARTOLOMEU e o MARQUÊS não a vêem)

BARTOLOMEU
Pedaços que mais parecem negá-lo. As trevas são meras decorrências dessa Babel. Onde cada civilização se veste de uma presunção tamanha, a pontos de se declarar melhor que qualquer outra. Como se as outras fossem a sua negação. E aqui estamos nós, eu e você, meu caro, no alvorecer de um século, enfiados no leito de um hospital, nos meus momentos finais de vida, tentando reverter heroicamente o processo. Tentando entender o que estamos fazendo aqui. Tentando entender o nosso lado Deus.  (olha para IRMÃ ROSÁRIO) Irmã Rosário. (ela não se move, o MARQUÊS guarda o projeto dentro do tacho, sob os panos) A luz está prestes a mudar. Saiba que eu tenho muito que agradecer a vocês dois. Por existirem. Somos um a testemunha do outro. Cada um a seu modo.

(IRMÃ ROSÁRIO está imóvel)

BARTOLOMEU
(tira do bolso um bilhete amarrado) Irmã, eu tenho aqui comigo uma mensagem para meu irmão, frei João Álvares. Como não sei se ele chegará a tempo de minha cena derradeira, peço a você que o entregue, sim? Por favor. Tenho instruções para ele.

(IRMÃ ROSÁRIO pega o bilhete, acena que “sim” com a cabeça)

BARTOLOMEU
Esta noite se cumprirá, minha queridíssima Irmã Rosário! Teremos nossa visita encerrada, uma vez que nosso caro Marquês retornará a Portugal. Ele vai levar uma carga de valor imenso. Maior até do que qualquer um de nós três. Preciso, inclusive, pensar no que irei dizer a meu irmão João sobre meu possível enterro cristão.

(IRMÃ ROSÁRIO vai até o MARQUÊS, que não tira os olhos dela. Ela tira do bolso um bilhete e o  entrega ao MARQUÊS)

MARQUÊS
Irmã.

IRMÃ ROSÁRIO
Meu nome.

MARQUÊS
Como?

IRMÃ ROSÁRIO
(retira o véu e a pala, fica com a cabeça descoberta) Me chame pelo meu nome. Por favor.

(silêncio)

MARQUÊS
Rosário.

(MARQUÊS abre o papel)

BARTOLOMEU
(pensa sozinho, escrevendo no ar) Irmã Rosário de La Cruz. Digníssima amiga e religiosa. Irmã de Caridade do Hospital de La Misericórdia de Toledo, Espanha. (pausa) Não.

IRMÃ ROSÁRIO
Por favor, leia. (pousa o candeeiro sobre a mesa)

MARQUÊS
(lê)
Ya toda me entregué y di
Y de tal suerte he trocado
Que mi Amado para mi
Y yo soy para mi Amado.
 
IRMÃ ROSÁRIO e MARQUÊS
(juntos)
Cuando el dulce Cazador
Me tiró y dejó herida
En los brazos del amor
Mi alma quedó rendida,
Y cobrando nueva vida
De tal manera he trocado
Que mi Amado para mí
Y yo soy para mi Amado.

BARTOLOMEU, IRMÃ ROSÁRIO e MARQUÊS
 (juntos)
Porque si es dulce el amor,
No lo es la esperanza larga:
Quíteme Dios esta carga
Más pesada que el acero,
Que muero porque no muero.

IRMÃ ROSÁRIO
Que muero porque no muero.

BARTOLOMEU
Que muero porque no muero.

MARQUÊS
Que lindo. É seu?

(IRMÃ ROSÁRIO acena que “não” com a cabeça)

BARTOLOMEU
Não.

IRMÃ ROSÁRIO
Santa Teresa de Ávila. Eu mesma não saberia dizer desta forma.

BARTOLOMEU
(escreve no ar) Nestas mal traçadas linhas...(treme) Não.

MARQUÊS
Obrigado.

IRMÃ ROSÁRIO
Continue.

(durante a cena das cartas, os personagens estão entregues a seus momentos particulares, onde podem contracenar de formas diversas e também dar o texto quase em simultaneidade, e haverá sugestões de ação entre eles)

BARTOLOMEU
(escreve) Cidade de Toledo, aos 19 dias do mês de novembro do ano da Graça de 1724. Meu querido e mui amado irmão.

MARQUÊS
(lendo) Meu nobre e amado Senhor.

IRMÃ ROSÁRIO
(em devaneio, segue para outro lado) Minha doce e querida Rosário.

BARTOLOMEU
(sempre escrevendo) João.  Despeço-me de ti, de nossos momentos em família, e de tudo o que passamos juntos. Foram momentos que serão eternizados, não mais nesta vida, mas continuarão guardados na memória.

MARQUÊS
Nobre é tua estirpe, humilde é minha origem. Meu querido. Eu fui apresentada a um mundo novo, dentro de minhas próprias emoções, a partir de tua presença. Algo que desconhecia por completo.

IRMÃ ROSÁRIO
(devaneando) Um clarão me levou a ti, como numa doce surpresa. Não te vejo mais como antes, mas agora, sob um véu que se abre, e me conduz ternamente a teu coração, a tua pele, a teus carinhos.

MARQUÊS
Desde quando te vi pela primeira vez, eu soube. Nos clarões, tua face me aparecia como um sinal – era teu amor que se aproximava. E me descobri por inteira.

BARTOLOMEU
Temo, sobretudo, por tua segurança. O Tribunal do Santo Ofício não te dará trégua. Será preciso que combinemos o que dizer perante a Mesa dos inquisidores.É preciso que você se arrependa de tudo. Você saberá como se explicar.

IRMÃ ROSÁRIO
(começa a escrever no ar, fazendo jogo de espelhos com BARTOLOMEU, que também escreve) Vejo em ti a mulher com que a noite me presenteia. E me divago em teus cabelos. Reconheço em teus olhos a minha vida, fujo com meus dedos por tua boca, desenho o traçado de teu sorriso. Teus braços completam meus anseios, cada instante de teus pensamentos me perpetuam uma doce agonia.

MARQUÊS
Por toda minha vida eu clamei por esse momento. Era você, sempre o foi, continuará sendo. Minha pele não é mais a mesma. Um sorriso se abriu em meu rosto, onde antes havia apenas a dor da perda. Meu corpo, por inteiro, é uma novidade. Esta noite tão especial e tão completa, para mim, será eterna.

BARTOLOMEU
(serve dois copos de água da moringa, passa um deles para o MARQUÊS, a fim de que brindem) Sobre minha pessoa, diga apenas que me conhece por eu também ser natural da Vila de Santos, das conquistas de Portugal, na América, na minha qualidade de sacerdote secular que se graduou em Sagrados Cânones, em Coimbra. (o MARQUÊS cumprimenta BARTOLOMEU, faz uma reverência, que é retribuída, brindam e bebem água)


IRMÃ ROSÁRIO
(começa a tirar uma série de cartas dos bolsos do hábito) Teus braços completam meus anseios, cada instante de teus pensamentos me perpetuam uma doce agonia.

(ambos, MARQUÊS e IRMÃ ROSÁRIO, sob um foco de luz)

MARQUÊS
Desejo que fique comigo, aqui, em Toledo, meu Senhor.

IRMÃ ROSÁRIO
Venha comigo para Lisboa, meu amor, e te ensinarei a contar as gaivotas do Tejo.

BARTOLOMEU
De minhas idéias, diga que ouviu coisas diabólicas, que enlouqueci. (brinca imitando um louco, divertindo IRMÃ ROSÁRIO, que finge se assustar e ri) Diga que meu engenho aéreo serviria para criar um Império Universal dos judeus, com capital na Sagrada Jerusalém. Um Quinto Império, como clamava o profeta Daniel. E que, com este engenho, eu poderia destruir e submeter todos os reinos do mundo. O resto das idéias eu deixarei por escrito.

IRMÃ ROSÁRIO
Quero levá-la de burgo em burgo feito saltimbanco que brinca e cantarola. Que a Europa inteira saiba a alegria que você me devolveu.

MARQUÊS
Poderei te encontrar em todos os clarões desta minha vida tão silenciosa.

BARTOLOMEU
E assim que você vier para minha extrema unção, peço que as obtenha com a religiosa que tão bem cuidou de mim nesses meus últimos dias. (cumprimenta IRMÃ ROSÁRIO, que retribui, ele acaricia o cabelo dela) Assim que ler a mensagem, é necessário que a destrua imediatamente, bem como esta, que você está lendo agora.

(BARTOLOMEU anda até a cama, senta-se)

MARQUÊS
(ele e IRMÃ ROSÁRIO ficam de costas, um para o outro) Desejo que me leve contigo, meu Senhor, para tua Lisboa.

IRMÃ ROSÁRIO
Fico contigo, nesta tua Toledo de mistérios milenares, de tuas ruelas de carinho e de momentos eternos.

MARQUÊS
Do mesmo rio, das mesmas garrafas e mensagens. Desejo que me leve contigo para as fogueiras do teu amor, não importa onde seja.

IRMÃ ROSÁRIO
Minha amada, esta noite tão preciosa quanto mágica, em que a Lua pára...

MARQUÊS
No teu estuário de gaivotas ou na minha noite de rouxinóis.

IRMÃ ROSÁRIO
...e suas sombras seguram o suspiro da aurora só para elas, trouxe-me até você, que me preencheu a vida de alegria.

BARTOLOMEU
(senta na cama, prenúncio de sua morte, e MARQUÊS e IRMÃ ROSÁRIO, cada um se coloca em uma ponta da cama, em luto) Gostaria muito de ser enterrado em solo sagrado aqui mesmo, em Toledo, esta urbe espanhola que em tão pouco tempo fiquei, mas que tanto aprendi a amar. Sugiro a Igreja de San Roman, você saberá escolher o local.

MARQUÊS
Uma noite em que poderei ser infinitamente apenas tua.

IRMÃ ROSÁRIO
Até esta mulher que me estende a mão e diz: fica comigo.

BARTOLOMEU
(levanta-se na cama, retorna a escrever no ar) Tenho confiança em ti, João. Guarde em teu coração nossas conversas e confidências. Muito tenho a agradecer a ti, em plenitude. Sentirei saudades. Adeus.

MARQUÊS
(de frente para o público, termina de ler a carta) Tua, eternamente. Rosário.

IRMÃ ROSÁRIO
(de frente para o público, devaneia) Teu, para sempre. Joaquim Francisco.

BARTOLOMEU
(de frente para o público) Teu irmão que tanto o ama. Bartolomeu Lourenço.

(Instantes. IRMÃ ROSÁRIO olha para o MARQUÊS, que a vê e vem em sua direção. Ele a devolve a carta dela)

MARQUÊS
Não posso.

IRMÃ ROSÁRIO
Não pode?

(BARTOLOMEU lentamente tampa os ouvidos, uma mão por vez, fecha os olhos)

MARQUÊS
Não posso ficar contigo.

IRMÃ ROSÁRIO
Não?

MARQUÊS
Eu tenho uma missão muito perigosa.

IRMÃ ROSÁRIO
Você vai nadar até os manuscritos.

MARQUÊS
Como?

IRMÃ ROSÁRIO
(olha para ele) O naufrágio da caravela. Você vai salvar os manuscritos, nadar até a praia.

BARTOLOMEU
Camões. E “Os Lusíadas”.

MARQUÊS
Camões?

IRMÃ ROSÁRIO
A companheira dele se afoga.

BARTOLOMEU
Dinamene.

IRMÃ ROSÁRIO
Dinamene. Que muero porque no muero.

MARQUÊS
Do que você está falando?

IRMÃ ROSÁRIO
Do que você está falando? Você tem que levar alguma coisa que é maior que você mesmo. Mas eu não posso seguir contigo. Eu represento perigo.

MARQUÊS
Perigo?

(IRMÃ ROSÁRIO, de posse de sua carta, rasga-a com raiva contida  em vários pedaços)

MARQUÊS
O que está fazendo?

(IRMÃ ROSÁRIO, serenamente, olha para o candeeiro com a vela acesa, com os pedaços de carta aproxima-os da chama, e começa a pegar fogo neles. Ela separa os grupos de papel em chamas e olha para o MARQUÊS)

IRMÃ ROSÁRIO
Ficar comigo significa a chama eterna.

MARQUÊS
Do que você está falando?

IRMÃ ROSÁRIO
(adianta-se para o MARQUÊS com as folhas em fogo, ele se afasta) A fogueira.

(com os papéis queimando em mãos, IRMÃ ROSÁRIO olha para o tacho, e se livra dos papéis em chamas agachando-se rapidamente para colocá-los no tacho, que se incendeia)

MARQUÊS
NÃÃÃÃÃOOOO!!!!!!!!!!!!!!!!! (afasta ela, que cai para um lado) Você é louca? (ela se assusta, paralisa, MARQUÊS vai em direção da água para tentar apagar a chama, IRMÃ ROSÁRIO pega outras cartas e joga no fogo antes mesmo que o MARQUÊS alcançasse a moringa, ela rasga mais cartas e as joga no fogo)

(BARTOLOMEU se ajoelha, cruza os dedos, cabeça baixa)

BARTOLOMEU
Pater noster, qui es in cælis
sanctificétur nomen tuum
advéniat regnum tuum
fiat volúntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidiánum da nobis hódie
et dimítte nobis débita nostra,
sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris
et ne nos indúcas in tentatiónem
sed líbera nos a malo.

IRMÃ ROSÁRIO
(enquanto MARQUÊS despeja água e percebe que não tem mais como salvar o projeto, e chora) Eu te entendo mais do que você possa imaginar.

MARQUÊS
Você não entende! (chora)

IRMÃ ROSÁRIO
As vozes me diziam. Algo estava muito errado. (fecha os olhos, suavemente) E por um instante, tudo fica muito claro para mim. (sorri) Minhas sombras... Elas me diziam coisas. Por isso eu tinha medo.


BARTOLOMEU
(levanta-se, devagar) As forças em contrário.

IRMÃ ROSÁRIO
(sorri) Eu tive que escolher a luz. O clarão do fogo. Pois nossos desejos e ambições nada mais são do que meras sombras. Não há nada de real nelas.

BARTOLOMEU
(caminha devagar em direção à cama, muito devagar) Morrer para que surja o novo.

IRMÃ ROSÁRIO
O fogo. Ele eleva e constrói na ascensão. Ele é sagrado. Sabe o que faz.

(MARQUÊS vê BARTOLOMEU, corre para ele, olham-se por um instante. abraçam-se fortemente)

IRMÃ ROSÁRIO
Ele não se repete, está sempre se transformando.

BARTOLOMEU
(olha para o MARQUÊS, que chora muito) O que está anunciado se cumprirá.

IRMÃ ROSÁRIO
O que está anunciado se cumprirá.

BARTOLOMEU
(para o MARQUÊS) Devemos renunciar às distrações do Caminho.

IRMÃ ROSÁRIO
Eu sou apenas uma mulher. (fecha os olhos, sorri) Eu não sou nada além de uma mulher. Só isso. (abre os olhos) E já é muito.

BARTOLOMEU
(para MARQUÊS) Avance sempre. Jamais olhe para trás.

MARQUÊS
O que nos resta?

BARTOLOMEU
Voar. Para alcançar os céus uma ave precisa primeiro abandonar o chão. (sorri)

(os sinos de uma catedral badalam)

IRMÃ ROSÁRIO
(sorri) San Juan de Los Reyes! Os sinos do monastério estão tocando!

BARTOLOMEU
A luz já vai mudar. (para o MARQUÊS) Pode ir, meu rapaz. Vá.

MARQUÊS
Mas e o senhor?

BARTOLOMEU
Eu farei a minha parte. (sorri, aperta as duas mãos do MARQUÊS juntas. MARQUÊS se afasta, aproximando-se de IRMÃ ROSÁRIO)

IRMÃ ROSÁRIO
Que muero porque no muero.

(olha para o MARQUÊS, sorri docemente para ele, enquanto BARTOLOMEU se senta na cama)

IRMÃ ROSÁRIO
Muchas gracias, mi señor.

MARQUÊS
Pelo quê?

IRMÃ ROSÁRIO
Por ser um clarão.

(ele faz menção de ir beijá-la, ela dá um leve passinho para trás, coloca a mão à frente, com doçura. IRMÃ ROSÁRIO sorri)

IRMÃ ROSÁRIO
Eu te mandarei uma mensagem numa garrafa. Descerá El Tajo. O Tejo. Chegará até você. (faz nele o sinal do rosário, as três cruzes na testa, nos lábios e no coração e finalmente uma cruz maior, abençoando-o)

MARQUÊS
Eu não sou fantasma.

(IRMÃ ROSÁRIO  sorri logo em seguida. Instantes. MARQUÊS, se afasta lentamente, sempre olhando para IRMÃ ROSÁRIO, pega suas coisas e começa a caminhar de costas. Instantes. Um clarão se acende atrás dele. O MARQUÊS caminha solenemente, de costas, sorrindo para IRMÃ ROSÁRIO, até se tornar uma silhueta, quando a luz enfim apaga e ele desaparece no breu, ela assiste ao momento)


Quadro 6


IRMÃ ROSÁRIO
(olhando o breu) Adeus. (explode em choro)

(instantes)

(a luz da peça sofre a última mudança, retorna ao que era antes do delírio)

BARTOLOMEU
A luz está mudando.

IRMÃ ROSÁRIO
(chorando) Isso só pode ser um delírio.

BARTOLOMEU
O que provamos? O Homem passa pela morte e pela História com a mesma audácia com que vem à vida?

IRMÃ ROSÁRIO
(para si) Só pode ser.

(IRMÃ ROSÁRIO olha para a fumaça vinda do tacho, olha em seguida para BARTOLOMEU)

BARTOLOMEU
Em que medida somos farsa de nós mesmos? (olha para IRMÃ ROSÁRIO, que agora caminha lentamente em sua direção) Em que acreditamos? Onde realmente estão nossas sombras? Não é preciso formar respostas. Mas as perguntas são muito bem-vindas. Todas elas.
É realmente necessário que deixemos marcas nesta passagem? É para isso que lutamos? Que destruimos exércitos e construimos cidades? Civilizações inteiras? Simplesmente para pegar um lápis e fazer um risco numa parede?

(IRMÃ ROSÁRIO se aproxima de BARTOLOMEU, que permanece sentado na cama. Ele coloca a mão diante dos olhos dela, como na cena inicial)

BARTOLOMEU
O que vemos diante de nós? O clarão? O cometa? O fim do mundo? Por ordem de quem?

(IRMÃ ROSÁRIO segue chorando)

BARTOLOMEU
Estarão nossas sombras dizendo coisas? O que elas dizem? Para onde nos levam? Talvez seja preciso dormir com a vela acesa. Velar. Pois é saudável que acordemos dessa letargia em que estamos sepultados. Enquanto é tempo. (tira solenemente a mão diante dos olhos de IRMÃ ROSÁRIO, que olha para ele, chorando muito. BARTOLOMEU se deita de forma tranquila)

IRMÃ ROSÁRIO
(instantes. Fecha com os dedos os dois olhos de BARTOLOMEU, chora, e finalmente o cobre. IRMÃ ROSÁRIO pega o candeeiro aceso e leva consigo. Caminha lentamente até às proximidades do tacho e se deita Apaga a vela com um sopro e fica deitada, de costas, formando uma cruz,  enquanto fala)
Que muero porque no muero...
Que muero porque no muero...
Que muero porque no muero...
Que muero porque no muero...
Que muero porque no muero...
Que muero porque no muero...

(luz em resistência)

FIM

 
“Lourenço”

Abril de 2009.