“TALHADO MUNDO”
de
Ruy Jobim Neto
Cenário –
As obras inacabadas, sacos de cimento, paredes pela metade, tijolos, carrinho de mão. No meio do canteiro de obras, umas estatuetas com santinhos, tudo em gesso branco, sem pintura.
Ação –
Uma cidadezinha fictícia, Santo Elpídio da Serra.
Época : atual. Num outono.
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Personagens:
ZIMBÓRIO, o santeiro (*)
EDIVALDO, o repórter
(*) zimbório é como se chama o domo, o remate exterior das cúpulas de uma igreja
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EDIVALDO
(EDIVALDO cruza a cena, no breu e, enquanto caminha pelo cenário, vai clicando com sua câmera digital, fazendo flashes e mostrando aqui e ali o ambiente com os santinhos e a obra da capela. EDIVALDO chega ao proscênio, onde se acende. foco sobre ele. EDIVALDO conversa diretamente com a platéia, enquanto manipula a câmera, ora focando, ora clicando em alguma direção).
(para a platéia) TODA CIDADE QUE SE PREZA TEM OS SEUS CABELOS EM PÉ. E EU FALO DE HISTÓRIAS CABELUDAS, MESMO. DISSO EU ENTENDO. (ri) EU ME CHAMO EDIVALDO. (mira a câmera em sua direção) COM “I”. (clica, disparando flash) E-DI-VAL-DO. SOU REPÓRTER DE UM JORNAL DAQUI, DA CIDADE, A “GAZETA ELPIDIENSE”, PROPRIEDADE DO MEU TIO, JOSÉ FILINTO DOS SANTOS, VEREADOR. DAÍ O FATO DE EU SER QUASE UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO, PORQUE A CIDADE INTEIRA TEM CONVÊNIO COM A PREFEITURA, O JORNAL TEM CONVÊNIO COM A PREFEITURA, VIVE DE EDITAL PÚBLICO, DE LICITAÇÃO, DE VERBA PÚBLICA, É PRATICAMENTE UNS...NOVENTA E OITO POR CENTO DE TUDO AQUI, DE SANTO ELPÍDIO DA SERRA (LONGE PACAS DA CAPITAL!), TEM CONVÊNIO COM A PREFEITURA. É SUPERMERCADO, É MERCEARIA, É FARMÁCIA, É TÁXI, PRATICAMENTE TUDO. OS OUTROS DOIS POR CENTO SÃO O... CARTÓRIO ...E A PRÓPRIA PREFEITURA. (muda de assunto) MAS NÃO É DE NADA DISSO QUE EU VIM FALAR, NÃO. (tom) QUANDO EU FALO CABELUDO, CABELO EM PÉ, EU FALO DAQUELAS HISTÓRIAS QUE A GENTE OUVE FALAR QUANDO A GENTE É CRIANÇA, OU AQUELAS QUE A VÓ DA GENTE CONTA BEM DE MANHÃ CEDO, NO CAFÉ COM LEITE COM PÃO E MANTEIGA, SABE? POIS É, SANTO ELPÍDIO DA SERRA É ASSIM. VOCÊ FICA SABENDO QUEM MORREU, QUEM NASCEU, QUEM CASOU, QUEM SE ESCAFEDEU DA CIDADE, TUDO NUMA PAULADA SÓ, LOGO DE MANHÃ, BEM CEDO. E AÍ VIRA O COMENTÁRIO DO DIA, O COMENTÁRIO DA SEMANA. E EU SOU REPÓRTER.(prepara a câmera como se fosse clicar novamente, mirando, focando) VIVO DE HISTÓRIAS. PRA QUE ACONTEÇA UMA HISTÓRIA NESTA CIDADE, LONGE DE SER AQUELAS COISAS TIPO, AH, FULANINHA FILHA DE BELTRANO DEU PRA NÃO SEI QUEM, E DEPOIS (começa a clicar novamente, disparando flashes) SE CASOU COM O OFICIAL DE JUSTIÇA, COM FESTA CHEIA DE FLORES E VEREADORES NO CLUBE PRINCIPAL DA CIDADE E TODOS OS AMANTES DELA ESTAVAM POR LÁ? (pára de clicar e disparar os flashes) NÃO, ESSE TIPO DE COISA NÃO ENTRA NO JORNAL, CLARO, MAS QUE EU SEI, EU SEI. (ri) NÃO TEM HISTÓRIA NESTA CIDADE QUE EU NÃO SAIBA...(tempo. Pensa) MAS TEM UMA... QUE ME DEU TRABALHO, AH, SE DEU...(lembra, luz em resistência vai mostrando o cenário, geral branca muito suave) O SANTEIRO...O SANTEIRO...SABE AQUELE CAMARADA SIMPLES, DEVOTO, CATÓLICO PRATICANTE, CRISMADO, BATIZADO, ETC., ETC, ETC?.... ESSE ME DEU TRABALHO... PORQUE ERA ÍNTEGRO... (pensa) E ELE TINHA UMA HISTÓRIA PRA CONTAR. E EU NÃO SEI BEM COMO É QUE TODA A COISA COMEÇOU, E OLHA QUE EU TENTEI TIRAR DELE. E EU SENDO REPÓRTER, SABE COMO É QUE É, NO JORNAL DO MEU TIO VOCÊ ACABA FAZENDO DE TUDO, VIRA DIAGRAMADOR, FAZ PAUTA, REDIGE E... NAQUELE DIA (prepara a câmera novamente) EU ESTAVA FOTOGRAFANDO (começa a clicar) O CASAMENTO DE UMA PRIMA MINHA...(lembra, pára por um segundo) A LUÍSA... (tom) MAS, COMO ELA TAVA CASANDO ERA COM OUTRO, (retorna a clicar) EU TAVA SIMPLESMENTE FOTOGRAFANDO. E EU ENCONTREI UM LOCAL INTERESSANTE PARA FOTOGRAFAR O CASAL, QUE ERA ATRÁS DA IGREJA, PERTO DO COLÉGIO DOS PADRES, UMAS RUÍNAS QUE FORAM DE UM CONVENTO DE FREIRAS ANTIGO, DAQUI DE SANTO ELPÍDIO. (pára de clicar) FOI LÁ QUE TUDO COMEÇOU.
ZIMBÓRIO
(foco em ZIMBÓRIO) AH, MEU DEUS!
EDIVALDO
(para a platéia) BOM, EU PENSEI, “AH, MEU DEUS” PODE SER QUALQUER COISA. MENOS PARA ELE. E EU DISSE. (para ZIMBÓRIO) Ô, MEU AMIGO, O QUE HOUVE?
ZIMBÓRIO
NADA, NÃO. TÁ TUDO BEM.
EDIVALDO
OLHA LÁ, HEIN? POSSO AJUDAR EM ALGUMA COISA?
ZIMBÓRIO
OBRIGADO, MOÇO. TÁ TUDO BEM.
EDIVALDO
(para a platéia) “TUDO BEM”, DISSE ELE. (pensa) SABE QUANDO VOCÊ FAREJA UMA COISA QUE NÃO É O QUE É? DEIXEI ROLAR. (volta a clicar e disparar flashes, sempre na direção mais próxima dos bastidores em que ele estiver) CONTINUEI FOTOGRAFANDO...FOTOGRAFANDO...E DÁ-LHE LUÍSA, NO SEU VESTIDO DE NOIVA, DE VÉU E GRINALDA, TODA LINDA, NAQUELES AMASSOS NO MARIDO DELA, UM TOUPEIRA...E DÁ-LHE LUÍSA, E BEIJO AQUI, E ABRAÇO ALI, E MÃO BOBA ACOLÁ, ASSIM, BEM NA MINHA FRENTE, OS DOIS, DOIDINHOS PRA IR PRO MOTEL EM LUA-DE-MEL! AQUELA COISA, E AGARRA DALI, E VAI, E VOLTA, E BEIJA, E ENFIM, E COISA E TAL...E EU FOTOGRAFANDO...(pára de clicar) A IMPRESSÃO QUE EU TINHA ERA QUE ELA TAVA FAZENDO AQUILO SÓ PRA ME BOTAR CIÚME, COISA DE MULHER...
ZIMBÓRIO
(interrompe) MOÇO! (abre luz geral branca)
EDIVALDO
(para a platéia) E AÍ EU PAREI.(para o casal fictício) VOCÊS ME DÃO LICENÇA SÓ UM POUQUINHO? (para a platéia) O CASAL FOI SE AGARRAR EM OUTRO LUGAR. E EU FUI VER O QUE ERA. (para ZIMBÓRIO, enquanto apaga o cigarro no chão, sob o sapato) DIZ AÍ, AMIGO, O QUE HOUVE?
ZIMBÓRIO
MOÇO, O SENHOR NÃO TIROU FOTOGRAFIA POR AQUI NÃO, NÉ? (a partir desta fala de ZIMBÓRIO, EDIVALDO pode, em dados momentos de jogo teatral, dar uma clicada em algo do cenário, sem flash, escondendo a ação de ZIMBÓRIO).
EDIVALDO
NÃO, DE JEITO NENHUM. (olha a platéia, de relance, buscando cumplicidade com ela) POSSO AJUDAR EM ALGUMA COISA?
ZIMBÓRIO
NÃO... É...SE O MOÇO NÃO TIROU FOTO, TÁ TUDO BEM.
EDIVALDO
POR QUE? É PROIBIDO TIRAR FOTO POR AQUI? EU NÃO LEMBRO DE NENHUMA PLACA DIZENDO COISA ALGUMA.
ZIMBÓRIO
NÃO, ME DESCULPA, QUER DIZER, PODE TIRAR FOTO AQUI! MAS...HOJE NÃO.
EDIVALDO
TEM ALGUM PROBLEMA? EU TÔ ATRAPALHANDO? VAI TER ALGUMA PROCISSÃO? QUE EU SAIBA, É DAQUI A DOIS DIAS A FESTA DO PADROEIRO!
ZIMBÓRIO
É...POR ISSO MESMO! DAQUI A DOIS DIAS. (AI, MEU DEUS!)
EDIVALDO
AMIGO, VOCÊ TÁ BEM, MESMO? TEM CERTEZA?
ZIMBÓRIO
NÃO, MOÇO! TÁ TUDO BEM! AGRADECIDO!
EDIVALDO
VOCÊ, PELO QUE EU LEMBRO, É O SANTEIRO DA CIDADE, NÃO É?
ZIMBÓRIO
SOU.
EDIVALDO
MESTRE...(lembrando) ...ZIMBÓRIO?
ZIMBÓRIO
AINDA NÃO SOU MESTRE, NÃO, MOÇO. QUEM DERA FOSSE!
EDIVALDO
(olha em torno, observa as colunatas com os santinhos) MAS FOI VOCÊ QUE ESCULPIU ESSES SANTINHOS AQUI, NÃO FOI?
ZIMBÓRIO
FUI EU SIM, MOÇO! EU FAÇO COM O MAIOR GOSTO. APRENDI COM MEU PAI E COM O MEU AVÔ. (acena para EDIVALDO, chamando) E TEM AQUI UMA QUE EU GOSTO, EM PARTICULAR. (aproximam-se da estátua) ESSA AQUI... É SANTA CLARA. OLHA SÓ COMO ELA SEGURA A LAMPARINA. (orgulhoso) MINHA ESPOSA, MARIA EMILIA, ME DIZ QUE NÃO TEM NINGUÉM QUE ENTALHE SANTA CLARA TÃO BONITO QUE NEM EU.
EDIVALDO
(olhando) AH...BONITO, HEIN? PARABÉNS. (clica fotos dos santinhos, em escondido)
ZIMBÓRIO
ATÉ O SEU PREFEITO FALOU ASSIM UM DIA PRA MIM – (imita o prefeito) “NINGUÉM FAZ SANTA CLARA QUE NEM VOCÊ FAZ!”. O SEU PADRE FICOU TODO ORGULHOSO. MARIA EMILIA, MINHA ESPOSA ENTÃO, COITADA, NÃO SABIA NEM ONDE BOTAR A CARA! FOI UMA ALEGRIA!
EDIVALDO
UÉ? ENTÃO? VOCÊ NÃO É MESTRE?
ZIMBÓRIO
NÃO, MAS QUE ISSO, MOÇO! SOU UM ENTALHADOR, MEXO COM TODO TIPO DE MADEIRA, POSSO ESCULPIR TAMBÉM EM GESSO, FAÇO MUITA COISA NESSA VIDA, GRAÇAS A DEUS!
EDIVALDO
AH, MAS QUE CABEÇA A MINHA! DEIXA EU ME APRESENTAR...(cumprimentam-se) MEU NOME É EDIVALDO...COM “I”...(explicando) E-DI-VAL-DO!
ZIMBÓRIO
PRAZER. ZIMBÓRIO, SEU CRIADO ...O MOÇO É...DO JORNAL?
EDIVALDO
JORNAL?
ZIMBÓRIO
É, MOÇO...O SEU TIO NÃO É DONO DE JORNAL? UM VEREADOR?
EDIVALDO
(interrompe) NÃO, NÃO, NÃO, NÃO! É SÓ UM CONHECIDO MEU, EU VENHO, TIRO FOTO, VENDO ALGUMA COISA PRA ELE...COISAS DESSE TIPO!
ZIMBÓRIO
AH.
EDIVALDO
POR QUE? ALGUM PROBLEMA?
ZIMBÓRIO
NÃO! ...(tom) NÃO.
EDIVALDO
(olha em volta) O QUE TÁ ACONTECENDO POR AQUI? VAI TER ALGUM PRÉDIO NOVO?
ZIMBÓRIO
É UMA CAPELA! FOI ENCOMENDA DO SEU PADRE E DO SEU PREFEITO, PRA MIM!
EDIVALDO
CAPELA?
ZIMBÓRIO
TAMBÉM SEI FAZER CAPELA, MOÇO. EU FAÇO O RISCO, E ACOMPANHO TODA A OBRA.
EDIVALDO
QUE INTERESSANTE... E É PRA SANTO ELPÍDIO, TAMBÉM?
ZIMBÓRIO
NÃO, NÃO É NÃO. SANTO ELPÍDIO JÁ TEM A MATRIZ. ESSA CAPELA AQUI É OUTRA COISA.
EDIVALDO
ENGRAÇADO. MINHA AVÓ DIZIA QUE AQUI EM SANTO ELPÍDIO TINHA UM CONVENTO ANTIGO, MUITO BONITO, AQUI PERTO DO COLÉGIO DOS PADRES. É VERDADE?
ZIMBÓRIO
(paralisa) CONVENTO?
EDIVALDO
É.
ZIMBÓRIO
VOCÊ É NETO DA DONA CHIQUINHA, NÉ NÃO? TÔ LEMBRANDO AGORA DE VOCÊ! EDIVALDO!
EDIVALDO
DE MIM?
ZIMBÓRIO
ISSO! EDIVALDO!
EDIVALDO
COM “I”?
ZIMBÓRIO
É! O MOÇO FOI PRA CAPITAL, DEPOIS SE MUDOU PRA SÃO PAULO, E AÍ FOI PRO RIO, NÃO FOI?
EDIVALDO
FUI.
ZIMBÓRIO
ENTÃO! LEMBREI AGORA DE VOCÊ! VIROU DOUTOR! (admirado) OLHA! QUE COISA!
EDIVALDO
MINHA VÓ É A DONA CHIQUINHA!
ZIMBÓRIO
ISSO! A DONA CHIQUINHA DO BORDADO! OLHA! ENTÃO...O MOÇO É SOBRINHO DO VEREADOR, AQUELE QUE TEM JORNAL!
EDIVALDO
NÃO, NÃO, NÃO! AGORA VOCÊ TÁ SE CONFUNDINDO!
ZIMBÓRIO
TÔ NÃO!
EDIVALDO
TÁ SE CONFUNDINDO!
ZIMBÓRIO
TÔ NÃO, MOÇO! E VOU DIZER PORQUÊ! A MINHA ESPOSA, MARIA EMÍLIA, UMA VEZ FICOU DOENTE, MAS DOENTE DE TUDO, COITADA, PARECIA ATÉ QUE IA MORRER!
EDIVALDO
AH, É?
ZIMBÓRIO
É, E AÍ, DERAM CARONA PRA ELA IR PRA SANTA CASA LÁ EM FIGUEIRA DO SUL! AÍ FOI NO CARRO DO SEU FILINTO, O SEU TIO, QUE ELA FOI PRA SANTA CASA!
EDIVALDO
NÃO, TÁ CONFUNDINDO!
ZIMBÓRIO
TÔ NÃO! VAI OLHANDO...AÍ O SEU FILINTO LIGOU PRA DONA CHIQUINHA E DISSE BEM ASSIM: (imitando o vereador) “TIA, TÔ INDO AGORA PRA SUA CASA PRA TOMAR AQUELE CAFEZINHO GOSTOSO AÍ COM A SENHORA! JÁ LEVEI MARIA EMILIA AQUI, PRA SANTA CASA, AQUI EM FIGUEIRA! E TÔ INDO PRAÍ DAQUI A POUQUINHO!” AÍ EU PENSEI: DEVE SER O TIO DO MOÇO!
EDIVALDO
NÃO...É QUE TODO MUNDO NA CIDADE CHAMA MINHA AVÓ DE TIA...É CARINHO DESSE POVO, SÓ ISSO...
ZIMBÓRIO
MAS...E O MOÇO NÃO TAVA TIRANDO FOTO DO CASÓRIO, AGORA HÁ POUCO?
EDIVALDO
(olha pra onde deixou o casal) AH, ELES...DEIXA ELES PRA LÁ..DEVEM ESTAR AJOELHADOS EM ALGUM CANTO, REZANDO...COMO O DIABO GOSTA!
ZIMBÓRIO
POIS EU CONHEÇO A NOIVA! É LUISA, FILHA DO SEU ZÉ FILINTO, VEREADOR, O DONO DO JORNAL, SEU TIO!
EDIVALDO
(aborrecido) AH, MINHA MÃE! QUER SABER, MEU AMIGO? PELO AMOR DE DEUS, PÁRA COM ISSO! EU SÓ TAVA TIRANDO FOTO, MAIS NADA.
ZIMBÓRIO
ENTÃO O MOÇO NÃO TEM NADA A VER COM O JORNAL?
EDIVALDO
NÃO! EU NÃO TENHO NADA A VER COM O JORNAL! EU NÃO ESTOU ENTENDENDO QUAL É O SEU PROBLEMA COM O JORNAL! VOCÊ TAVA AÍ, AGORA HÁ POUCO, TODO EXCLAMANDO, FALANDO “AI, MEU DEUS!” ISSO, “AI, MEU DEUS!” AQUILO... (tom) SE EU PUDER AJUDAR EM ALGUMA COISA, PODE CONTAR COMIGO!
ZIMBÓRIO
NÃO, SABE O QUE QUE É? (achega mais) É QUE EU E MINHA ESPOSA, MARIA EMÍLIA, A GENTE É MUITO CATÓLICO, SABE? A GENTE VAI NA MISSA TODO DOMINGO, EU ENTALHO OS SANTINHOS, ATÉ VENDO SANTINHO PRA OUTRAS CIDADES DA REGIÃO! VENDI UM DIA AQUI PRA FIGUEIRA DO SUL, OUTRO PRA SANTA CRUZ DO MATÃO, PRA TUDO QUANTO É CIDADE...ATÉ PRA DONA CHIQUINHA JÁ VENDI!
EDIVALDO
TÁ! E DAÍ?
ZIMBÓRIO
DAÍ QUE...O SEU PADRE ME ENCOMENDOU UMA CAPELA!
EDIVALDO
TÔ LIGADO! VOCÊ VAI FAZER O RISCO E TUDO O MAIS!
ZIMBÓRIO
ISSO! SÓ QUE TEM ESSE JORNAL AÍ, QUE FALA UM POUCO DEMAIS DA CONTA...
EDIVALDO
AGORA ENTENDI O SEU PROBLEMA COM O JORNAL.
ZIMBÓRIO
MAS NÃO É MEU PROBLEMA COM JORNAL, NÃO! VEJA BEM, EU SOU CATÓLICO APOSTÓLICO ROMANO PRATICANTE! FAÇO OS MEUS SANTINHOS, PINTO PAREDE DA IGREJA, AJEITO O PISO DA SACRISTIA, O ENCANAMENTO, TODO ESSE TIPO DE COISA. MAS ESSE JORNAL NÃO...ELE FICA XINGANDO AS PESSOAS, FALA MAL DO PREFEITO, FALA MAL DE TUDO QUANTO É VEREADOR... NÃO TÁ CERTO!
EDIVALDO
UÉ, POLÍTICA É POLÍTICA, EM QUALQUER LUGAR DO MUNDO É ASSIM, AMIGO.
ZIMBÓRIO
MAS É MUITA FOFOCA! MARIA EMILIA, MINHA ESPOSA, ME DIZ BEM ASSIM: (imita a esposa) “BEM, Ó, ESSE JORNAL AÍ É MUITO MALEDICENTE!”
EDIVALDO
(ri) ENTÃO O AMIGO PEGOU O DIA PRA IMPLICAR COM O JORNAL!
ZIMBÓRIO
MOÇO...(pensando) AI...EU NÃO POSSO NEM FALAR ESSAS COISAS...
EDIVALDO
QUE COISAS?
ZIMBÓRIO
EU NÃO SEI NEM POR ONDE COMEÇAR! EU ACHO QUE VOU AINDA FALAR LÁ, COM MINHA ESPOSA, MARIA EMÍLIA, COITADA, QUEM SABE ELA POSSA ATÉ... AH, MAS NÃO! EU NÃO SEI NEM PRA QUEM FALAR!
EDIVALDO
FALAR O QUÊ, AMIGO?
ZIMBÓRIO
EU...VI UMAS COISAS POR AÍ... NÃO!!!!! EU VOU ME ACONSELHAR COM O SEU PADRE! NÃO, NÃO, COM O SEU PADRE, NÃO" AI, MEU DEUS! EU TÔ NUM DESESPERO SÓ, MOÇO!
EDIVALDO
MAS DIZ, UÉ! COMO É QUE EU VOU SABER COMO É QUE EU POSSO TE AJUDAR?
ZIMBÓRIO
AH, PODE NÃO!
EDIVALDO
DIZ, UÉ!
ZIMBÓRIO
O MOÇO NÃO É SOBRINHO DO DONO DO JORNAL, NÉ?
EDIVALDO
AFE, JÁ DISSE QUE NÃO, DIACHO!
ZIMBÓRIO
NEM PRIMO DA NOIVINHA, NÉ?
EDIVALDO
(faz menção de ir embora, impacientando-se) OLHA, QUER SABER? EU VOU ME EMBORA DAQUI, DEIXAR AQUELES DOIS ALI, QUE TÃO SE VIRANDO ALI COMO O DIABO GOSTA! QUE EU JÁ PERDI A MINHA PACIÊNCIA COM O AMIGO! PASSAR BEM!
ZIMBÓRIO
(cortante, antes que EDIVALDO se vá) É QUE EU ENCONTREI UMAS COISAS NO ALICERCE DO CONVENTO! (EDIVALDO estatela. ZIMBÓRIO, para si mesmo) AI, MEU DEUS DO CÉU, FALEI!
EDIVALDO
(tempo..retornando devagar) ENCONTROU O QUÊ?
ZIMBÓRIO
UMAS COISAS...EU NÃO DEVIA FALAR...(olha para o céu, faz sinal da cruz) AI, MEU DEUS DO CÉU, ME PERDOA! ME PERDOA! SAIU!
EDIVALDO
(coloca ZIMBÓRIO pra se sentar num carrinho de mão) MEU AMIGO... ME DIZ... O QUE FOI QUE VOCÊ ENCONTROU?
ZIMBÓRIO
(tampa o rosto com a mão) EU NÃO SEI FALAR ESSAS COISAS!
EDIVALDO
JÁ SEI! (ZIMBÓRIO congela) FORAM OS OSSOS, DEVEM TER SIDO OS RESTOS MORTAIS DE ALGUMA MADRE SUPERIORA! (tempo) NÃO FOI ISSO? (corrige) SE FOI ISSO, TUDO BEM, UÉ!
ZIMBÓRIO
NÃO FOI ISSO.
EDIVALDO
ENTÃO, SE NÃO FOI ISSO...NÃO SEI O QUE PODE SER...SE O AMIGO NÃO FALAR, VAI FICAR DIFÍCIL EU DESCOBRIR...
ZIMBÓRIO
EU SOU MUITO TEMENTE A DEUS, MOÇO! TEM UMAS COISAS QUE EU NÃO SEI EXPLICAR!
EDIVALDO
TEM MUITA COISA QUE EU TAMBÉM NÃO SEI EXPLICAR! SE EU SOUBESSE EXPLICAR TUDO, EU ATÉ EXPLICAVA POR QUE É QUE EU TÔ AQUI, EM SANTO ELPÍDIO! PODIA ESTAR EM SÃO PAULO, PODIA ESTAR NO RIO...MAS NÃO TÔ!
ZIMBÓRIO
O MOÇO TEM FILHO?
EDIVALDO
NÃO.
ZIMBÓRIO
NEM EU. E MESMO ASSIM, EU E MINHA ESPOSA, MARIA EMÍLIA, A GENTE TÁ ATÉ PENSANDO EM FAZER ALGUMA COISA, MAIS PRA FRENTE, É SÓ A GENTE AJEITAR UM POUCO A VIDA E DEPOIS A GENTE VÊ O QUE FAZ.
EDIVALDO
(interrompe, impaciente) EU NÃO TÔ ENTENDENDO! UMA HORA O AMIGO FALA QUE VIU UMAS COISAS NO ALICERCE DO CONVENTO, NÃO É OSSO DE FREIRA, E AGORA ME PERGUNTA SE EU TENHO FILHO?
ZIMBÓRIO
O SENHOR JÁ VIU NENÊ QUANDO MORRE? (faz o sinal da cruz) AI, MEU DEUS DO CÉU! ME PERDOA!
EDIVALDO
(tom) NENÊ QUANDO MORRE? (tempo) O QUE AMIGO SABE QUE EU NÃO SEI?
ZIMBÓRIO
É QUE EU NÃO POSSO SAIR CONTANDO ESSAS COISAS! O SENHOR SABE COMO É QUE É A CIDADE! TEM ESSE JORNAL, QUE FALA MAL DAS PESSOAS, TEM AS CAROLAS, QUE SÃO PARTEIRAS, QUE CONHECEM TODO MUNDO... TEM O SEU LIBÓRIO DA FARMÁCIA, QUE SABE MUITA COISA, TEM...
EDIVALDO
(impaciente) TÁ, TÁ, TÁ! MAS O QUE O AMIGO VIU?
ZIMBÓRIO
NENÊ MORTO! NAS PAREDES DO CONVENTO!(faz careta) AI, MEU DEUS DO CÉU, EU FALEI!
EDIVALDO
NENÊ MORTO? (começa a vislumbrar um furo de reportagem) O AMIGO SABE DIZER ONDE FOI QUE...
ZIMBÓRIO
(cortante e desesperado) NÃO, NÃO SEI DE NADA NÃO!
EDIVALDO
CLARO QUE O AMIGO SABE!
ZIMBÓRIO
SEI NÃO!
EDIVALDO
TANTO SABE QUE O AMIGO TÁ ASSIM, DESSE JEITO! (tom) O QUE O AMIGO VIU FOI FETO EMPAREDADO, NÃO FOI?
ZIMBÓRIO
É ASSIM QUE CHAMA?
EDIVALDO
É... E O AMIGO SABE O QUE SIGNIFICA?
SE O AMIGO QUISER, EU EXPLICO.
ZIMBÓRIO
EU VOU GOSTAR DE OUVIR?
EDIVALDO
NÃO SEI.
ZIMBÓRIO
A MINHA ESPOSA, MARIA EMÍLIA, VAI GOSTAR DE OUVIR?
EDIVALDO
SÓ PERGUNTANDO
ZIMBÓRIO
É COISA MUITO RUIM?
EDIVALDO
OLHA...RUIM, RUIM MESMO EU NÃO SEI DIZER. MAS TAMBÉM NÃO É LÁ COISA MUITO BOA, NÃO...
ZIMBÓRIO
É COISA DE IGREJA?
EDIVALDO
COMO ASSIM?
ZIMBÓRIO
É CRISTÃO?
EDIVALDO
FOI NO CONVENTO QUE O AMIGO ACHOU, NÃO FOI?
ZIMBÓRIO
FOI.
EDIVALDO
E...O CONVENTO É CRISTÃO, NÃO É?
ZIMBÓRIO
É....MAS....FETO? É ASSIM QUE CHAMA? (EDIVALDO afirma com a cabeça) ESSE TIPO DE COISA É
NORMAL, É?
EDIVALDO
AQUI EM SANTO ELPÍDIO EU NUNCA TINHA OUVIDO FALAR, NÃO...
NEM MINHA AVÓ, DONA CHIQUINHA, NUNCA FALOU NESSAS COISAS. (sorri) MAS QUE É INTERESSANTE, É.
ZIMBÓRIO
MOÇO, MAS E..SE ISSO CAIR NO OUVIDO DESSE JORNAL AÍ...ESTOURA?
EDIVALDO
(sorri) ESTOURA! CORRE TUDO QUANTO É CIDADE, POR AÍ! CORRE O MUNDO!
(sonoplastia = Fantasia em Dó Maior, de Johann Sebastian Bach, solo de órgão, bem alto, foco "celestial" azul sobre os dois)
EDIVALDO
(levando susto) O QUE É ISSO?
ZIMBÓRIO
É O SEU PADRE, ENSAIANDO PRO DIA DA PROCISSÃO! AI, MEU DEUS...
EDIVALDO
O DIA DO PADROEIRO? DAQUI A DOIS DIAS!
ZIMBÓRIO
É! E O PIOR! ELE VAI ABENÇOAR A OBRA DA CAPELA!
EDIVALDO
POIS ENTÃO É UM BOM MOTIVO PARA FALAR SOBRE ESSE ASSUNTO, NÃO ACHA?
ZIMBÓRIO
QUE ASSUNTO?
EDIVALDO
ORA, QUE ASSUNTO! O DOS BEBÊS EMPAREDADOS, FILHOS DAS FREIRAS!
ZIMBÓRIO
(apavorado) FILHOS DAS FREIRAS?
EDIVALDO
EXATO! O QUE O AMIGO PENSAVA?
ZIMBÓRIO
(faz o sinal da cruz) AI, MEU SANTO ELPÍDIO! EU SABIA QUE COISA BOA NÃO ERA!
EDIVALDO
AMIGO...ESSA HISTÓRIA PODE TE RENDER UM BOM DINHEIRO, SABIA?
ZIMBÓRIO
(concentrado em si) EU BEM QUE PENSEI.. ..MINHA ESPOSA, MARIA EMILIA, NÃO VAI GOSTAR NADA, NADA DISSO...
EDIVALDO
(também concentrado) OLHA SÓ! UM BOM DINHEIRO PRA VOCÊ E PARA SUA ESPOSA, VOCÊS PODERÃO TER QUANTOS FILHOS QUISEREM, E PODERÃO TER CASA ONDE QUISEREM, FAMA EM ESCALA NACIONAL, REDES DE TELEVISÃO DO BRASIL INTEIRO, RÁDIOS, JORNAIS, FOTOS, O ESTRELATO INSTANTÂNEO! JÁ IMAGINOU ISSO?
ZIMBÓRIO
(ainda concentrado) O QUE VÃO DIZER AS CAROLAS DA CIDADE? E O SEU LIBÓRIO, DA FARMÁCIA? O QUE VAI PENSAR O PADRE? E EU? COMO VOU FICAR? ONDE EU VOU BOTAR MINHA CARA?
EDIVALDO
(visionário) EM LETREIROS GARRAFAIS: (imita voz de locutor jornalístico) “SANTEIRO DESCOBRE SEGREDO GUARDADO A SETE CHAVES!” NÃO...NÃO...MELHOR QUE ISSO... “SANTEIRO DESCOBRE FETOS HUMANOS EM CONVENTO!” OU AINDA:”SANTEIRO ENCONTRA ABORTOS DE FREIRAS!”
ZIMBÓRIO
(berra) EU NÃO VOU FAZER ISSO! (música de órgão cessa, e o foco celestial também cessa, retorna a geral branca) NUNCA! PELO AMOR DE DEUS!
EDIVALDO
AMIGO! DEIXA DE SER CARETA!
ZIMBÓRIO
COMO?
EDIVALDO
DEIXA DE SER BURRO! VOCÊ NÃO QUER FAMA E RECONHECIMENTO PARA A SUA ARTE? OS SEUS SANTINHOS SERIAM VENDIDOS E COMPRADOS PELA INTERNET, SERIAM EXPORTADOS PARA A EUROPA ORIENTAL, PARA O JAPÃO, OS CHINESES IRIAM PEDIR OS SEUS SANTINHOS A RODO, A UNIÃO EUROPÉIA INTEIRA ENCHERIA NAVIOS CARGUEIROS COM SEUS SANTINHOS! A SUA HISTÓRIA IRIA PARAR NA TELEVISÃO, NO CINEMA! EM HOLLYWOOD! E EU IRIA VOLTAR PRA SÃO PAULO OU PRO RIO!
ZIMBÓRIO
DE JEITO NENHUM! QUE ISSO, MOÇO?! EU NÃO POSSO FAZER ESSE TIPO DE COISA! EU SOU CATÓLICO APOSTÓLICO ROMANO! SOU CASADO! EU E MARIA EMILIA, MINHA ESPOSA, COITADA, NÓS QUEREMOS TER UM FILHO UM DIA!
EDIVALDO
UM FILHO QUE PODERIA NASCER EM NOVA YORK!
ZIMBÓRIO
EU SOU TEMENTE A DEUS!
EDIVALDO
VOCÊ SERIA MAIS FAMOSO QUE JESUS CRISTO! MAIS FAMOSO QUE OS BEATLES!
ZIMBÓRIO
EU TENHO UM NOME A ZELAR!
EDIVALDO
VOCÊ NÃO TEM UM NOME A ZELAR! VOCÊ VAI TER UM NOME A ZELAR! IMAGINE! (começa a tirar fotos do local) ENTREVISTAS VÃO ROLAR SOLTAS NAS PRINCIPAIS EMISSORAS DE TEVÊ DO PAÍS, E VOCÊ VAI DIZER BEM ASSIM: (imitando) “EU BEM QUE SABIA QUE ESSAS FREIRAS DO CONVENTO DE SANTO ELPÍDIO DA SERRA ERAM BEM SAFADINHAS! QUE ELAS ABORTAVAM QUANDO FICAVAM GRÁVIDAS, QUE ELAS RECEBIAM HOMENS NAS SUAS PRÓPRIAS CELAS!” E OLHA SÓ QUE SENSACIONAL!... E TUDO ISSO CONTADO POR QUEM? PELO SANTEIRO MAIS FAMOSO DAS AMÉRICAS! VOCÊ! MESTRE ZIMBÓRIO!
ZIMBÓRIO
(desesperado) EU NÃO SOU MESTRE, JÁ DISSE!
EDIVALDO
VOCÊ VAI SER UM ASTRO, UM SUPERSTAR!
ZIMBÓRIO
(observa EDIVALDO tirando fotos) O MOÇO TÁ TIRANDO FOTO DE NOVO!
EDIVALDO
(continua a tirar fotos) A SUA HISTÓRIA, MEU AMIGO, VAI SER VENDIDA PARA A CNN, PARA A BBC, PRA NATIONAL GEOGRAPHIC, PRO DISCOVERY CHANNEL, PRO CINEMA! VAI GANHAR O OSCAR DE MELHOR ROTEIRO!
ZIMBÓRIO
PÁRA DE TIRAR FOTO, MOÇO!
EDIVALDO
(aponta as lentes da câmera para ZIMBÓRIO) EU QUERO INCLUSIVE FOTO COM O AMIGO! ISSO MESMO! E TODO O CANTEIRO DE OBRAS, A PAREDE ONDE O AMIGO ENCONTROU...
ZIMBÓRIO
(interrompe, desesperado) PÁRA COM ISSO, MOÇO! OU EU VOU TOMAR UMA PROVIDÊNCIA!
EDIVALDO
O AMIGO PODIA POSAR PERTO DA PAREDE INFESTADA DE FETOS! JÁ PENSOU? (mira em direção a ZIMBÓRIO): "SANTEIRO DESCOBRE PAREDE COM FILHOS DE FREIRAS!"
ZIMBÓRIO
(parte para cima de EDIVALDO) ME DÁ ISSO AQUI! (tira a máquina digital das mãos de EDIVALDO, foge dele)
EDIVALDO
EI! (desesperado, persegue ZIMBÓRIO) CUIDADO COM ISSO AÍ! CUSTOU MUITO CARO, ME DEVOLVE ESSA CÂMERA!
ZIMBÓRIO
CALMA LÁ! (jogo entre os dois)
EDIVALDO
CALMA LÁ O QUÊ, AMIGO? ISSO É MEU, ME DEVOLVE!
ZIMBÓRIO
(lendo com dificuldade) AQUI DIZ...PRO-PRI-E-DA-DE... DO... JOR-NAL...PROPRIEDADE DO JORNAL...
EDIVALDO
(desesperado) AMIGO, ME DEVOLVE ISSO AQUI!
ZIMBÓRIO
..."GA-ZE-TA...EL-PI-DI-EN-SE"...GAZETA ELPIDIENSE!
EDIVALDO
(caído em si) TÁ, TÁ, TÁ, TÁ! EU EXPLICO TUDO, EU EXPLICO!
ZIMBÓRIO
MAS ISSO AQUI NÃO TÁ BATENDO COM O QUE O MOÇO FALOU!
EDIVALDO
O QUE EU FALEI?
ZIMBÓRIO
SOBRE SEU TIO!
EDIVALDO
(aproveita a deixa) MAS NÃO É MEU TIO!
ZIMBÓRIO
AQUI DIZ: "EDI-VAL-DO .RE-PÓR-TER"... EDIVALDO REPÓRTER.
EDIVALDO
NÃO SOU EU!
ZIMBÓRIO
É O MOÇO, SIM! NETO DA DONA CHIQUINHA!
EDIVALDO
NETO DELA EU SOU SIM!
ZIMBÓRIO
ENTÃO! É EDIVALDO!
EDIVALDO
COM "I"?
ZIMBÓRIO
(fica aparvalhado, olha pra máquina, procura ler) NÃO SEI!
EDIVALDO
(aproveita e consegue tirar a máquina de ZIMBÓRIO) ENTÃO! SE NÃO É COM "I", NÃO SOU EU! EU SOU EDIVALDO COM "I"! E-DI-VAL-DO!
ZIMBÓRIO
ACHO QUE É COM "I", SIM!
EDIVALDO
ISSO NÃO IMPORTA MAIS! AH, MEU AMIGO, DEIXA DE SER BESTA! O QUE IMPORTA É ESSA SUA HISTÓRIA SENSACIONAL QUE O AMIGO TEM NAS MÃOS!
ZIMBÓRIO
(olha para as mãos) QUE HISTÓRIA?
EDIVALDO
COMO "QUE HISTÓRIA?" A DOS FETOS EMPAREDADOS, ORA! DOS FILHOS DAS FREIRAS!
ZIMBÓRIO
ARRE! SAI PRA LÁ! EU NÃO TENHO ESSA HISTÓRIA NA MINHA MÃO, NÃO! LONGE DE MIM, EU SOU TEMENTE A DEUS!
EDIVALDO
VOCÊ VAI FICAR FAMOSO, VAI FICAR MUITO CONHECIDO!
ZIMBÓRIO
MAS EU SOU CONHECIDO!
EDIVALDO
ONDE?
ZIMBÓRIO
LÁ, NA VILA DAS MERCÊS! TODO MUNDO SABE QUE EU FAÇO SANTINHO!
EDIVALDO
(ironizando) VILA DAS MERCÊS! VILA DAS MERCÊS! O QUE É A VILA DAS MERCÊS DIANTE DE IPANEMA, MEU AMIGO? DIANTE DE COPACABANA? DO FLAMENGO? DE SÃO PAULO CAPITAL? O AMIGO NÃO SABE O QUE É ISSO, MAS EU SEI! EU SEI! E EU MOREI CINCO ANOS EM SÃO PAULO, FREQUENTEI BARZINHOS DA VILA MADALENA, FUI A TEATROS, A SHOWS NO IBIRAPUERA, A EXPOSIÇÕES, AO CINEMA! TAMBÉM MOREI NO RIO! VOCÊ SABE O QUE É O ARPOADOR, MEU AMIGO? A LAGOA RODRIGO DE FREITAS? OS ARCOS DA LAPA? UMA ESCOLA DE SAMBA?
ZIMBÓRIO
NÃO SEI NADA DISSO, NÃO! SÓ SEI QUE NÃO TÁ CERTO!
EDIVALDO
NÃO TÁ CERTO O QUÊ, MEU AMIGO?
ZIMBÓRIO
ESSA HISTÓRIA TODA QUE O MOÇO FALOU!
EDIVALDO
MAS É CLARO QUE NÃO TÁ CERTO! IMAGINE!... FREIRINHAS SAFADAS SUBINDO PELAS PAREDES COM CALOR NA BACURINHA, LOUCAS POR UM HOMEM E ELAS, ALI...TOTALMENTE FECHADINHAS NO CONVENTO...NINGUÉM PODE ENTRAR, NINGUÉM PODE VÊ-LAS...AH, QUE DELÍCIA...
ZIMBÓRIO
O MOÇO TÁ É PRECISANDO DE UMA ÁGUA BENTA!
EDIVALDO
E AÍ, NO MEIO DA NOITE, BEM DE MADRUGADA, UM PADRE USA UMA CHAVE QUE SÓ ELE TEM, IMAGINE O PADRE EUSÉBIO!
ZIMBÓRIO
PADRE EUSÉBIO? (nisso, toca o órgão, novamente, a mesma música de Bach, o foco azul desce sobre ZIMBÓRIO e EDIVALDO)
EDIVALDO
SIM, ELE MESMO...UH...QUE DELÍCIA ENTRAR NUMA CELA GELADINHA DE CONVENTO À NOITE E ENCONTRAR UMA FREIRINHA SEDENTA...FAMINTA...
ZIMBÓRIO
O PADRE EUSÉBIO?
EDIVALDO
SIM, ELE MESMO, O SEU QUERIDO PADRE EUSÉBIO, O MESMO QUE VAI REZAR MISSA DO PADROEIRO DA CIDADE DAQUI A DOIS DIAS, QUE ESTÁ ENSAIANDO TOCATAS E FUGAS...SÓ PARA RECORDAR AS PODRIDÕES DO SEU PASSADO DE COROINHA, DE POSTULANTE, DE NOVIÇO, DE COMEDOR DE FREIRA!
ZIMBÓRIO
(faz o sinal da cruz em direção a EDIVALDO) O MOÇO TÁ PRECISANDO SER BENZIDO!
EDIVALDO
O SEU QUERIDO PADRE EUSÉBIO, QUE CASOU O AMIGO COM A SUA ESPOSA, MARIA EMÍLIA, ELE...COM AQUELE AR TODO IMPONENTE, DO ALTO DA HOMILIA, DO SERMÃO, DA ÓSTIA CONSAGRADA, ELE ESCONDE TODA UMA HISTÓRIA QUE TODOS QUEREM CONHECER, QUE SANTO ELPÍDIO DA SERRA QUER CONHECER, QUE O BRASIL E O MUNDO QUEREM CONHECER!
ZIMBÓRIO
LÁ VEM O MOÇO DE NOVO COM ESSA HISTÓRIA.
EDIVALDO
SIM! E EU POSSO FAZER O AMIGO SAIR DESSA VIDINHA DE SANTEIRO DE UMA CIDADEZINHA MUNDANA E HIPÓCRITA QUE NEM SANTO ELPÍDIO DA SERRA E GANHAR O MUNDO!
ZIMBÓRIO
MAS EU NÃO QUERO GANHAR O MUNDO, MOÇO! EU MORO É AQUI!
EDIVALDO
(tempo) MUITO BEM, MUITO BEM, MEU AMIGO! ENTÃO EU DIGO PRA VOCÊ! EU MENTI DESCARADAMENTE! MENTI SOBRE MEU TIO! MENTI SOBRE LUÍSA, A NOIVINHA! MENTI SOBRE O JORNAL!
ZIMBÓRIO
MENTIU, É? BEM QUE EU TAVA DESCONFIADO!
EDIVALDO
MENTI, SIM! EU SOU REPÓRTER! EU ME CHAMO EDIVALDO COM "I", E-DI-VAL-DO! SOU PRIMO DA LUÍSA, AQUELA PUTINHA QUE NUNCA QUIS NADA COMIGO, E FOI POR ISSO QUE EU ME FUI PRA SÃO PAULO E PRO RIO, FOI PRA ESQUECER LUÍSA! E AGORA ELA TÁ CASADA! E SABE QUE EU GOSTO DELA, QUE EU TENHO TESÃO POR ELA!
ZIMBÓRIO
A NOIVINHA?
EDIVALDO
MENTI, SIM, SOBRE MEU TIO! O VEREADOR JOSÉ FILINTO DOS SANTOS, DONO DA "GAZETA ELPIDIENSE", ESSA BOSTA DE JORNAL QUE SÓ ELOGIA OS CORRELIGIONÁRIOS E DESCE A RIPA NOS INIMIGOS POLÍTICOS, QUE É UM JORNAL QUE VIVE DE DINHEIRO DA PREFEITURA, SIM! EU MENTI! EU FAÇO PARTE DO JORNAL! E O DONO DELE É MEU TIO, SIM!
ZIMBÓRIO
O MOÇO GOSTA DA NOIVINHA? (pára o órgão da igreja e a luz azul sobre eles)
EDIVALDO
(começa a chorar enquanto fala) E AGORA EU ME VEJO DIANTE DA OPORTUNIDADE DE SAIR DESSA MERDA DE CIDADE, DE NUNCA MAIS TOPAR NO MEIO DA RUA COM ESSAS CAROLAS COM TEIA DE ARANHA NA BACURINHA, COM ESSES VEREADORES CORRUPTOS, COM ESSE MEU TIO DONO DE UM JORNAL PODRE, COM LUÍSA QUE AGORA TÁ CASADA COM OUTRO, COM ESSA JUVENTUDE SEM NENHUM HORIZONTE DAQUI DE SANTO ELPÍDIO DA SERRA! (chora) E VOCÊ NÃO É CAPAZ DE SE JUNTAR A ESSA PODRIDÃO SIMPLESMENTE PORQUE VOCÊ É ÍNTEGRO! (põe o dedo em riste em direção a ZIMBÓRIO) ÍNTEGRO! VOCÊ NÃO PASSA DE UM ÍNTEGRO!
ZIMBÓRIO
MAS JUSTO A NOIVINHA?
EDIVALDO
(chora e depois já parte para a raiva) SIM! A NOIVINHA! LUISA, AQUELA QUE JAMAIS ME DEU SEQUER UMA CHANCE SÓ PORQUE SOMOS PRIMOS! PORQUE NOSSA FAMÍLIA IRIA CAIR DE PAU MATANDO, SÓ PORQUE PODERIA SAIR UM MONSTRINHO DESSA RELAÇÃO! E AÍ APARECE A CHANCE DE EU MOSTRAR QUE SOU MUITO MAIS QUE UM PRIMO! QUE EU SOU UM REPÓRTER, QUE EU CONSIGO HISTÓRIAS SENSACIONAIS COMO ESSA SUA, MEU AMIGO, E POSSO, SIM, VOLTAR PRO RIO OU PRA SÃO PAULO!
ZIMBÓRIO
BEM QUE MARIA EMÍLIA, MINHA ESPOSA, TINHA ME FALADO.ELA SEMPRE ME FALOU...
EDIVALDO
O QUE ELA NÃO FALOU É QUE EMBAIXO DESSA SUA CAPELA, MEU AMIGO, ESTÁ UMA HISTÓRIA EXPLOSIVA QUE PODE FAZER NÃO SÓ EU VOLTAR PARA A VIDA, COMO TAMBÉM TIRAR VOCÊ DO ANONIMATO E DA MERDA!
ZIMBÓRIO
LUÍSA, A NOIVINHA, SEMPRE GOSTOU FOI DO MOÇO! (após ZIMBÓRIO apontar na direção de EDIVALDO, a revelação desestrutura o discurso de EDIVALDO).
EDIVALDO
(surpreso, aparvalhado) O QUÊ?...O QUE O AMIGO DISSE?
ZIMBÓRIO
POIS TÔ FALANDO! ERA DO MOÇO QUE A NOIVINHA SEMPRE GOSTOU!
EDIVALDO
PERAÍ, COMO ASSIM? EU ACABEI DE TIRAR FOTO DO CASAMENTO DELA, O CASAL FOI SE CUTUCAR LÁ, NA MOITA ATRÁS DA SACRISTIA DA IGREJA!...QUE HISTÓRIA DOIDA É ESSA, AGORA, AMIGO?
ZIMBÓRIO
A NOIVINHA, A LUÍSA, SEMPRE CONTOU PRA GENTE SOBRE O MOÇO QUE ELA GOSTAVA. EU SÓ NÃO SABIA QUE O MOÇO ERA O AMIGO.
EDIVALDO
E O AMIGO ESTÁ ME CONTANDO ISSO AGORA POR QUÊ?
ZIMBÓRIO
A CIDADE SEMPRE ESPALHOU ESSA HISTÓRIA. DA NOIVINHA PERDIDA QUE ANDAVA PELAS NOITES ESPERANDO O MOÇO QUE ELA GOSTA.
EDIVALDO
(com expressão apatetada) AH, É?
ZIMBÓRIO
É! CHEGARAM A DIZER QUE A COITADA VARAVA AS NOITES SOZINHA, DE VÉU, GRINALDA E UM BUQUÊ DE ROSA. PARECIA UM FANTASMA, DEUS ME LIVRE! (faz sinal da cruz)
EDIVALDO
AH, É?....
ZIMBÓRIO
TÔ DIZENDO...
EDIVALDO
(recuperando-se da estória) PERAÍ, NÃO, NÃO! ESTAMOS FALANDO É DE OUTRA COISA! É DOS FETOS EMPAREDADOS NO ALICERCE DO CONVENTO! CADÊ ELES?
ZIMBÓRIO
É QUE MARIA EMILIA, MINHA ESPOSA, E A NOIVINHA, SÃO AMIGAS...
EDIVALDO
(interrompendo, impaciente e ao mesmo tempo confuso) TÁ, TÁ, TÁ! ISSO NÃO INTERESSA, AGORA! E A PAREDE? ONDE ESTÃO OS FETOS? O AMIGO TÁ ESCONDENDO ISSO POR MEDO DE ALGUMA COISA, É?...
ZIMBÓRIO
ARRE! EU NÃO TENHO É MEDO DE NADA, NÃO!
EDIVALDO
(aproveitando) ...OU O AMIGO TÁ ESCONDENDO ESSA PAREDE É PRA TER A FAMA SOZINHO?
ZIMBÓRIO
COMO ASSIM?
EDIVALDO
ME DIZ AÍ, AMIGO, NÃO ENROLA! (começa a percorrer o cenário atrás do alicerce, com a câmera em punho) ONDE É QUE TÁ, HEIN?
ZIMBÓRIO
OLHA, EU NÃO QUERO MOSTRAR ESSA PAREDE PRO MOÇO, NÃO! E NEM PRA NINGUÉM! NÃO É COISA CERTA!
EDIVALDO
NÃO É COISA CERTA O AMIGO FALAR DA NOIVINHA!
ZIMBÓRIO
VIU? EU DISSE!
EDIVALDO
VIU O QUÊ?
ZIMBÓRIO
A NOIVINHA AINDA MEXE COM O MOÇO!
EDIVALDO
PÁRA DE ME ENROLAR! (empunha a máquina, novamente, fazendo foco) ME FALA, ONDE ESTÃO OS FETOS? ME MOSTRA, CADÊ ELES?
ZIMBÓRIO
NÃO VOU MOSTRAR! JÁ FALEI!
EDIVALDO
AH, É? (olha em volta) E ESSES SANTINHOS, AQUI?
ZIMBÓRIO
O QUE TEM ELES?
EDIVALDO
O AMIGO TEM CARINHO PELOS SANTINHOS, NÃO TEM?
ZIMBÓRIO
(ficando desconfiado) UÉ...EU SOU SANTEIRO, SOU ENTALHADOR...EU GANHO MINHA VIDA COM ELES!
EDIVALDO
E SE EU...(chega próximo a um dos santinhos de gesso) DERRUBAR UM DELES, FAZ FALTA?
ZIMBÓRIO
ARRE! DERRUBAR UM SANTINHO? O MOÇO TÁ DOIDO? É SANTINHO! É PECADO DERRUBAR SANTINHO!
EDIVALDO
PECADO? O AMIGO DISSE PECADO? E O QUE TEM LÁ EMBAIXO, NO CONVENTO? NÃO É FRUTO DE PECADO?
ZIMBÓRIO
EU NÃO SEI NADA DISSO, NÃO! (confuso) SEI QUE É PECADO DERRUBAR SANTINHO!
EDIVALDO
VAMOS FAZER UMA TROCA. O QUE O AMIGO ACHA? PENSA AÍ...EU NÃO DERRUBO UM SANTINHO SEU, SE O AMIGO DISSER ONDE É A PAREDE.
ZIMBÓRIO
ARRE!
EDIVALDO
TÁ BOM ASSIM?
ZIMBÓRIO
EU VOU CHAMAR A POLÍCIA!
EDIVALDO
E SE EU CONTAR PRA POLÍCIA SOBRE ESSA PAREDE?
ZIMBÓRIO
NÃO SE PODE BOLIR COM ESSAS COISAS, NÃO! NÃO É CERTO!
EDIVALDO
NÃO É CERTO DEIXAR ESSA HISTÓRIA SENSACIONAL PERDIDA, ALI, NO ALICERCE DO CONVENTO, EMBAIXO DA CAPELINHA, PRA QUE NINGUÉM SAIBA! O POVO PRECISA CONHECER ISSO!
ZIMBÓRIO
POR QUÊ?
EDIVALDO
PORQUE SANTO ELPÍDIO É UMA CIDADE FORA DOS MAPAS! ISSO AQUI NÃO VAI PRA FRENTE SE NÃO HOUVER UM ESCÂNDALO NACIONAL! E EU POSSO FAZER ISSO! ... ENTÃO (se aproxima de uma estátua) O AMIGO VAI CONTAR OU NÃO?
ZIMBÓRIO
ARRE! O MOÇO PRECISA É BEBER ÁGUA BENTA, ISSO SIM!
EDIVALDO
(gruda numa estátua, praticamente se abraça ao pedestal) VAI OU NÃO?
ZIMBÓRIO
NÃO BRINQUE COM ISSO, MOÇO...
EDIVALDO
O AMIGO TÁ ME AMEAÇANDO?
ZIMBÓRIO
OLHA...
EDIVALDO
E SE EU FIZER...ASSIM?(empurra um pedestal com santinho pro chão, ZIMBÓRIO se coloca embaixo, salvando a obra)
ZIMBÓRIO
EU VOU CHAMAR A POLÍCIA!
EDIVALDO
EU POSSO DERRUBAR OUTRO SANTINHO...O QUE VOCÊ PREFERE? VOCÊ CHAMA A POLÍCIA, EU CONTO O QUE O AMIGO TANTO ESCONDE LÁ EMBAIXO...AÍ, A POLÍCIA, QUE É MANCOMUNADA COM A PREFEITURA, QUE POR SUA VEZ TEM SUAS COISAS LÁ COM A IGREJA, VAI TUDO ISSO CHEGAR NOS OUVIDOS DO MEU TIO, DONO DO JORNAL, JÁ IMAGINOU O FUZUÊ?
ZIMBÓRIO
ARRE...
EDIVALDO
VAMOS, AMIGO...DIZ AÍ ONDE É QUE ESTÁ ESSA PAREDE INFESTADA DE FETOS, VAI...
ZIMBÓRIO
(agora, definitivamente ameaçando) O MOÇO QUER VER A PAREDE, NÃO É? QUER? POIS EU VOU TE MOSTRAR A PAREDE!
EDIVALDO
(estranhando) VAI?
ZIMBÓRIO
(erguendo a estatueta) O MOÇO QUER VER A PAREDE? EU VOU MOSTRAR! E DEPOIS NÃO ME DIGA QUE GOSTOU DO QUE VIU!
EDIVALDO
(preparando a máquina) POIS BEM, EU QUERO O AMIGO (faz enquadramentos com a câmera)...ALI...NÃO, NÃO...AQUI...
ZIMBÓRIO
(tira a câmera de EDIVALDO) SEM FOTO!
EDIVALDO
(paralisado. Tempo) SEM FOTO? O AMIGO....VAI MOSTRAR MESMO?
ZIMBÓRIO
(pega EDIVALDO pelo braço, fazendo-o a caminhar) VOU!
EDIVALDO
MAS...ASSIM? NA SECA? NA BUCHA?
ZIMBÓRIO
(após atravessarem a parte do cenário destinada à obra, vão até um ponto no fundo alto) OLHA AGORA! (tempo. EDIVALDO vê, fica pasmo) VIU? GOSTOU DO QUE VIU? (eles retornam de onde vieram, chegam mais à frente) ERA SOBRE ELES QUE O MOÇO QUER FALAR NAQUELE JORNAL QUE XINGA TODO MUNDO? É SOBRE ESSES ANJINHOS? O MOÇO NÃO TEM PIEDADE, NÃO?
EDIVALDO
PIEDADE?
ZIMBÓRIO
É! PIEDADE! A MESMA PIEDADE QUE O MOÇO NÃO TEVE QUANDO FOI EMBORA DAQUI E DEIXOU A NOIVINHA DESCONSOLADA!
EDIVALDO
ELA É MINHA PRIMA!
ZIMBÓRIO
ELA SEMPRE GOSTOU DO MOÇO!
EDIVALDO
AGORA TÁ CASADA!
ZIMBÓRIO
CULPA DE QUEM? (tempo) O MOÇO TEVE PIEDADE DELA QUANDO SE FOI?
EDIVALDO
POR ACASO A MINHA FAMÍLIA E A FAMILIA DELA TIVERAM PIEDADE DE NÓS DOIS QUANDO IMPEDIRAM O NOSSO AMOR? TIVERAM?
ZIMBÓRIO
O MOÇO FEZ ALGUMA COISA? (tempo) NÃO. O MOÇO NÃO FEZ NADA E SE FOI EMBORA. ESSA HISTÓRIA TODA AÍ DEU NO QUE DEU... E AGORA O MOÇO QUER IR EMBORA DE NOVO, SÓ QUE BOLINDO COM ANJINHO! (devolve a câmera) TÓ AQUI SUA MÁQUINA... O MOÇO É LIVRE PRA FAZER O QUE QUISER. (EDIVALDO pega a máquina de volta, olha bem para ZIMBÓRIO, anda devagar até à boca de cena)..
EDIVALDO
SOU?
ZIMBÓRIO
MAS SE LEMBRE DE UMA COISA... O MOÇO VIU O QUE VIU LÁ EMBAIXO... A HISTÓRIA O MOÇO JÁ TEM. É SÓ ESCREVER. E MOSTRAR PRO MUNDO, MOSTRAR SANTO ELPÍDIO PRO MUNDO, DO JEITO QUE O MOÇO QUER... E DEPOIS SE ESCAFEDER DAQUI, DESSA VIDA... MAS EU SÓ SEI UMA COISA, MOÇO... EU CONHEÇO MUITO BEM ESSA CIDADE... É UM MUNDO QUE JÁ VEM TALHADO, ESSE... E ELE NÃO MUDA, NÃO. (sai de cena, atravessando todo o cenário)
EDIVALDO
(no proscênio, olha pra máquina, vai esboçar uma foto, um sorriso, mas percebe que não tem vontade alguma de tirar uma foto própria, simplesmente não vê mais sentido. Para a platéia) “NÃO MUDA, NÃO”, DIZ ELE.... (sorri, ironicamente) E ASSIM, EU NÃO CONSEGUI TIRAR MESMO HISTÓRIA ALGUMA DESSE CARA...(ri) NÃO É A HISTÓRIA, SABE? É O CARA... RESOLVI ENTÃO DEIXAR QUIETO, NÃO BOLIR COM NADA QUE LEMBRASSE SANTO ELPÍDIO DA SERRA... DEIXAR PRA LÁ...PEGUEI O PRIMEIRO ÔNIBUS NA RODOVIÁRIA MINÚSCULA QUE TEM EM SANTO ELPÍDIO E OLHEI A CIDADE UMA ÚLTIMA VEZ. UMA CIDADE NÃO É FEITA SÓ DE RUAS E PRÉDIOS. E AÍ RESIDE O PERIGO. (pega a câmera, mira em sua direção, sorri, dispara um flash)
Blecaute.
FIM
